quinta-feira, outubro 27, 2005

Alguém

Uma das coisas que mais gozo me dá nas minhas viagens periódicas a Lisboa é começar a conhecer determinadas pessoas e saber um pouco delas sem estas sequer suspeitarem. Também eu só dei conta quando, ao pedir um galão num pequeno café em Santa Apolónia, ao meu lado, uma empregada de limpeza loura e alta pedia um café. Foi instantâneo: sorri.
Estávamos em Setembro, eu cansadíssima, descansava um pouco nos bancos desse mesmo recinto do café, à espera da hora do comboio. Ela estava sentada uns bancos à frente e de lado. Eu via-a a três quartos, reparei nela pelas marcas que tinha no corpo, invisíveis porém, de um passado difícil. Segurava um cigarro e contava orgulhosamente à empregada do café que a filha tinha entrado em Psicologia na Universidade de Lisboa, "na pública", dizia com respeito. A filha tinha 25 anos e agora entrava para Psicologia. Estava feliz! O tempo que o cigarro lhe demorava nos lábios não era reflexo algum de nervosismo ou de medo, era de felicidade. Tinha o cabelo apanhado com uma mola atrás da cabeça e tinha acabado de tomar café. Hoje, trazia o cabelo solto e pedia o café quando sorri.
"Quero um café não muito cheio, mas também não muito curto". Sorri, novamente. Segundos atrás tinha estado eu a pedir o meu galão com uma série de exigências. Volto ao início. Começo a construir uma série de histórias sobre várias pessoas de Lisboa. Uma das coisas que mais aprecio no meu dia a dia em Coimbra (apesar de vários amigos não compreenderem esta minha obsessão por uma certa decadência a que a cidade está inerente) é esse sentido de pertença que comungo com a cidade e com as pessoas. Gosto de andar pela baixa, pela praça, pela Universidade e sentir que conheço alguém, que alguém me encontrará subita e inesperadamente e me coloca ali. Em Coimbra, custa-me estar num café sentada sozinha. Em Lisboa, não. Sou exterior, assumo-me como exterior e nem mesmo quando aí vivi me senti menos exterior. No dia em que me despedi de Barcelona, há três anos e meio atrás, ia comprar o pão e era cedíssimo, as ruas ainda estavam muito calmas, e naquele percurso que já me era familiar e comum, pensava como me tinha enganado em relação à felicidade numa cidade como aquela. Adoro-a. Mas lembro-me de apontar algures numa folha solta que não era a cidade, cidade alguma!, que determinava a felicidade no tempo e no espaço. Andava, por aquela altura, envolta nos meus pensamentos acerca da felicidade no (e pelo) espaço e no (e pelo) tempo. Despedia-me da cidade com esse pensamento na mente. Regressava ao lugar em que me sentia presente.
Decidi ir mais cedo para Santa Apolónia. Ainda faltava uma hora para o comboio, mas apetecia-me descansar um pouco. E aproveitava para comprar umas castanhas assadas. Também já conheço o Senhor das castanhas de Santa Apolónia. E também ele me reconhece. Tal como reconhece o meu pai e nem sequer suspeita que aquele Senhor que lhe compra duas dúzias de castanhas para a filha é o meu pai. Também não sei se o meu pai será o único pai a fazê-lo, mas a ele, ele dá-lhe um saco de papel. Já o conhece. Pode parecer leviano dizê-lo, mas não. Há uma parte do meu pai e de mim que aquele Senhor conhece e pode mesmo saber mais do que o que eu penso que ele saiba. Já pode saber, inclusive, os dias em que o meu pai, por exemplo, lhe compra as castanhas e a hora em que normalmente apanha o comboio e o que o traz a Lisboa, sem o meu pai nunca lhe ter dito coisa alguma. Tinha que esperar um pouco. Porque sairiam castanhas quentinhas daí a dois minutos. Tinha tempo, esperei. Enquanto esperava, pude observar o carrinho das castanhas. Uns dias antes, a minha mãe dizia-me que eu tinha que tirar uma fotografia ao Senhor Zé. O Senhor Zé está todos os anos, por esta altura, na praça da República em Coimbra a vender castanhas assadas. Já o conheço há anos, já o trato pelo nome, também. E o carro do Senhor Zé é fantástico! "Tenho mesmo que lhe tirar uma fotografia", pensei enquanto observava o carro do Senhor das castanhas de Santa Apolónia. As castanhas assadas do Senhor Zé são sempre as melhores. Creio que agora saiba porquê... Tudo depende do carro. E o do Senhor Zé é único. Imagino que tenha sido ele próprio a construí-lo e a pintá-lo de azul. Para a próxima pergunto-lhe.