Este Verão
Não é exactamente a mesma coisa, mas é inevitável que em determinados momentos, tudo surja de novo na nossa memória. Um novo Verão com tanto do outro e do outro... Não é apenas a casa, a sala, a varanda, o jardim, o mar, o cantar das rolas – são 19 Verões aqui... - é algo que está para além de tudo isso e que, ao mesmo tempo, tudo isso transporta com ele. É como uma memória que não é uma memória do nosso cérebro, mas uma memória do nosso sistema nervoso, uma pequena parte, uma caixinha escondida algures no nosso corpo, que de vez em quando se abre. Chorar sem razão. Sorrir pateticamente quando não existe alguém à volta, só espaço infinito, indiferente. Ambos pertencem a essa caixinha, se é que é uma caixa, se é que tem forma. Este Verão, apesar de diferente de todos os outros, traz consigo algo dos outros todos. E percebo-o, quando menos percebo o que é que estou aqui a fazer. Porque a verdadeira razão, sei-a há muito e já não deveria ser razão para coisa alguma, quanto mais para fugir.
Durante uma das poucas vezes que espreitei pelos blogues de algumas pessoas queridas durante este Verão, descobri num deles, um excerto de uma obra de Michaux. Não tenho aqui as palavras certas, mas diziam qualquer coisa como ir ao fim dos nossos erros. Foi o que retive, foi o que me diziam a mim. Mas como ir ao fim dos nossos erros se só nos apercebemos deles quando descobrimos o seu fim? O que queria Michaux dizer, sei-lo. Mas de tantas vezes que penetrei nos meus erros que percebo que é a única saída possível. Lamentar o que não foi um erro sequer, é realmente uma tolice, um desperdício de tempo. Também não lamento. Nem os erros, nem o seu fim. O mais curioso é que descobri o excerto de Michaux no blogue de uma das poucas pessoas que compreenderão o quanto me afectaram essas palavras. Secretamente. Pareciam estar ali à minha espera. À espera que eu as lesse e compreendesse que ainda não tinha ido realmente ao fim dos meus erros. Uma vez recebi um pequeno texto no meu mail de A. porque havia escrito neste mesmo espaço um pequeno texto sobre uma dádiva de um amigo. As palavras de Michaux foram uma dádiva ainda maior: atingiram-me de imediato, fechei rapidamente o blogue, não queria lê-las outras vez. Nem sequer queria sentir-lhes a presença ainda ali. Ainda em mim. Não foi repulsa! Talvez apenas soubesse que ainda não as podia ler. Apesar de estarem à minha espera. Depois do Verão.
Quando desço as escadas de manhã para tomar o pequeno-almoço, a sala ainda está vazia, apenas uma brisa a percorre e toda a casa é silenciosa. A Maria Ana acorda, habitualmente, pouco tempo depois. Menos esta manhã. A Maria já estava na sala mais a mãe, mas quieta e silenciosa. As manhãs nem sempre são assim e, no entanto, são sempre assim. São infinitamente diferentes. O Tozé deve ter chegado há pouco, como todos os dias, uma hora mais cedo ou mais tarde. A janela do quarto é fechada cerca de uma hora depois. O meu irmão João não consegue dormir, com a Maria à volta dele e vem para o sofá e senta-a ao seu lado, enquanto a abraça e adormece de novo. Esta casa sem o meu outro irmão não é a mesma. Poucas pessoas perceberão uma diferença assim. Em todos os Verões, passávamos, pelo menos, dez dias todos juntos: eu, os meus pais, os meus irmãos e as minhas cunhadas, os meus sobrinhos. Este ano, o Miguel não veio. Não é Verão. Assim me parece. O João M. ainda dorme e continuará assim até o acordarem. Se acorda à hora de almoço, diz que madrugou e não é por se deitar, como o Tozé, às nove da manhã. São os seus primeiros dias de férias... Os meus pais saem, a Rosa também, o João M. e o Tozé dormem, o meu irmão dormita no sofá, enquanto a Maria se entretém a ver televisão. Não tarda vem verificar se eu continuo aqui. Abre a porta e pergunta-me por que é que estamos sozinhos? "Eu estou sozinha, o pai está sozinho, tu estás sozinha." De facto, é mesmo isto. Somos os únicos acordados (ou semi-acordados, no caso do meu irmão) e estamos os três em casa (porque os outros saíram) e estamos sozinhos. Não os três sozinhos, mas cada um sozinho. Cada um entretido com qualquer coisa, sem notar que o outro está entretido com outra coisa qualquer. E apenas a Maria o nota.
Continuámos sozinhos até à hora de almoço. O João M., entretanto, acordou. Todos regressaram. E almoçámos.
A tranquilidade dos primeiros dias começa a esvanecer. No entanto, ainda não consigo perceber porquê. Se é destes dias terem sido diferentes em ritmo dos outros, se eu começo a sentir a aproximação do dia em que me imaginei a terminar o trabalho para o seminário do José e este só ter ainda contornos incertos, dúvidas angustiantes e ideias absurdas, não obstante o seu encanto. A primeira introdução, como lhe chamei, continua válida dentro dessas ideias. Ganhou um limite próprio do dia em que foi escrita. E desde esse dia, também, que não consigo pensar em não a colocar no trabalho. Antes das palavras que a ocupam, ela é essa data. Não existe razão, por isso, para não a colocar no trabalho, mesmo escrita na primeira pessoa. A minha mãe, que corrige, habitualmente, os meus textos, objectou de imediato o uso da primeira pessoa num trabalho da natureza deste. Por uns momentos, umas horas de insónia, o comentário da minha mãe fez-me recuar um pouco nessa minha decisão, mas sempre que releio aquelas palavras, não consigo voltar atrás, não consigo substituir a primeira pessoa do singular pela terceira do singular ou pela primeira do plural e coordenar os respectivos tempos verbais, além de eliminar todas as referências a uma vivência pessoal e íntima. O dilema, se calhar, durou mais de duas horas... Entretanto, tudo se complicava com o virar das páginas de Mille Plateaux. Neste momento, tenho-a aqui ao meu lado, com as anotações da minha mãe a lápis, para corrigir. Hesito sempre que o tento fazer. Creio, também, que não é desta, tal como acredito que as correcções serão todas aquelas que não envolvam a alteração do sujeito ou dos tempos verbais.
Regressei a Coimbra. Optei por regressar ao silêncio absoluto. Neste momento, preciso deste mais do que nunca. Embora o nunca e o absoluto sejam nada. Estive um mês sem voltar a Coimbra e os que me conhecem acharão estranho que diga que não tive saudades, nem tão-pouco vontade em voltar. Parece que ouço as gargalhadas de alguém... ou a sua vontade em atirar-me isso à cara, como se tivesse sido sempre assim e eu nunca o soubesse. Como não sei tudo o resto. Como me enganei em muitas certezas que proferi, não sabendo sequer a proximidade que elas detinham em si dos meus outros erros, aqueles que me conduziram até aqui. Um episódio curioso. Num dia a seguir ao almoço, nos últimos dias nessa enorme casa onde passo o Verão, sentei-me na sala a beber o café e espreitei a televisão, onde passava, sem que eu soubesse, o episódio de onde eu extraí algumas das minhas primeiras palavras aqui. Saudades, tinha, de escrever neste espaço. De dizer disparates, de fazer asneiras.
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