domingo, junho 25, 2006

Últimas memórias (em construção)

Ainda não consigo escrever sobre o meu regresso a Barcelona, quatro anos depois... Tentei, por várias vezes, fazê-lo, mas completamente em vão. Desisto. Tentarei escrever, no entanto, sobre um tema que tem ganho contornos muito diferentes nestes últimos dias. Já tem aparecido nas minhas pequenas notas, sem, no entanto, querer ainda dizer muito. Tal como eu ainda não sei se já apreendi tudo o que me diz a mim. A viagem a Barcelona pode ser um bom princípio.
A primeira memória: o cheiro. Barcelona tem um cheiro próprio, como todas as cidades têm. É impossível, pelo menos para mim, descrevê-lo. Creio, também, que não exista descrição plausível para um cheiro. Talvez por aproximação consiga descrever o de Barcelona... é uma mistura dos cheiros de salsa, maresia e várias árvores. Não consigo! (Abano a cabeça.) Mas, mal saí do autocarro, que faz o trajecto entre o aeroporto e a praça da Catalunha, reconheci-o. Ou melhor, era o mesmo cheiro que estava guardado algures na minha memória. É habitual considerarmos a memória visual a mais poderosa. As fotografias são um bom exemplo disso. Quase todos os autores que já se debateram com essa poderosa função da fotografia (como por exemplo, Sontag), pensaram na substituição da memória (se calhar, mais do que na substituição do real...). A fotografia é, sem dúvida, uma substituição da nossa memória. Tenho vindo a descobrir que em mim, no entanto, as memórias auditiva e táctil são, quase sempre, mais fortes, mais intensas e mais perpétuas do que a memória visual. E, em Barcelona, percebi como é que a memória olfactiva pode conter, também, essa pequena vida, profunda, escondida e autónoma. Tal como os sentidos, as suas memórias são mais intensas quando coexistem (umas despertam as outras, também...). É curioso, por isso, que dos momentos mais marcantes me lembre sempre de pormenores insignificantes, com uma particularidade: a existência de um som ou de um cheiro ou de uma expressão do meu corpo (que é, também, uma memória táctil). Mesmo que a memória visual persista (e a memória visual é a única impossível de anular completamente). Quando os momentos mais marcantes são também os últimos momentos - os últimos momentos numa cidade, os últimos momentos de um acontecimento, os últimos momentos com alguém... os últimos momentos de alguém – como é que são as nossas últimas memórias? E o que é que trazem em si? Que memórias? Não me sinto capaz de responder, senão de contar um dos momentos mais marcantes do meu regresso a Barcelona, notando que este regresso de que falo é aquele à cidade onde vivi durante seis meses, aos espaços que fizeram (fazem) parte de mim, de todos os meus dias, durante esses seis meses (é também fantástica a relação do tempo com a memória...). Quase sempre, ao voltar a casa ou ao sair de casa, passava pela rambla do Raval. Quem conhece, mais ou menos, a história de Barcelona, sabe que a rambla do Raval é uma fronteira entre o antigo bairro Chino e o centro de Barcelona (considerando este a área entre o MACBA, o CCCB e as "Ramblas"). Há uns anos atrás, para combater a degradação física e social daquela área (do antigo bairro Chino), o Ajuntament de Barcelona demoliu uma série de edifícios e, aos poucos, tem vindo a construir edifícios novos e a reabilitar os espaços públicos envolventes. Há, inclusive, um documentário sobre todo o processo, com depoimentos de residentes (de "desalojados") e imagens das demolições. Os edifícios novos assumem-se pela linguagem contemporânea e pelas funções cosmopolitas (por exemplo, são facilmente identificáveis ateliers de artistas, através das janelas de dupla altura). E a rambla do Raval pelo conjunto de palmeiras. A única fotografia que tenho de Barcelona no sótão onde passo grande parte do meu tempo de leitura e escrita é, precisamente, uma fotografia da rambla do Raval, ou melhor, de um edifício da rambla do Raval. Para mim, um dos edifícios mais bonitos de Barcelona. Ali, isolado, sozinho, no meio de todos aqueles que tentavam apagar à força a história de um lugar com cicatrizes profundas. Aquele edifício era a única ainda visível e onde toda a vida parecia concentrar-se. Já não existe. Descobri que a minha última memória era, também, a última memória daquele edifício. Digo a minha memória daquele lugar, não que deixe de identificar a rambla do Raval na minha memória, mas porque era aquele edifício que em muito determinava a minha paixão por aquele lugar e na memória do qual se fundiam sons e cheiros e luzes a cintilar num fechar de olhos em dias solares de Inverno. Também não vou perder a memória que já possuo, mas é certamente diferente. É última. Quando me vejo a passar pela rambla do Raval, vejo-me a olhar para ele. E já não existe.


Legenda: A primeira fotografia é a fotografia que refiro no texto; a segunda é do contexto.

A última palavra: o adeus. O adeus coincide com a última memória. No momento do adeus, existe essa vertigem que obriga a uma fixação atemporal de qualquer coisa, salvaguardando-se assim uma possibilidade de retorno. Sexta-feira foi a última aula de Molder. E as aulas de Molder não retornarão. Poderei sempre frequentá-las, mas serão sempre diferentes. Dizia Molder, nesta última aula, que cada aula tem uma atmosfera diferente, consoante os rostos, as expressões, os gestos, a colocação de cada um na sala e que essa atmosfera a faz recordar quem, por exemplo, esteve ou não na aula. Não é uma questão de controlo, mas um exercício da sua memória. É dessa forma que se recorda da aula, daquela aula. Ao longo das aulas, Molder foi-nos conhecendo (tal como nós a Molder e uns aos outros). Primeiro, os gestos. Depois, o nome e os gostos (as obsessões, em alguns casos). Por último, mas sempre, as fraquezas. De forma muito simples, como também já aqui disse, tudo o que nos dizia, atingia-nos. As suas palavras eram (são) sempre de enorme exactidão. Advertia-nos, constantemente, para o significado exacto de tal palavra. O André, no final de uma das últimas aulas, lamentava o facto destas não terem sido gravadas, pois nunca mais iria conseguir encontrar aquelas palavras de Molder. Consoante a atmosfera, também eram assim as palavras de Molder. Lembro-me, também, de Molder dizer, no fim de uma das suas aulas, que antes de entrar na sala, julgou não ser capaz de proferir uma única palavra (estava um calor imenso...) e que no fim se julgava capaz de continuar a falar durante mais cinco horas! As memórias das aulas de Molder têm, em mim, um efeito diferente, por exemplo, das memórias das aulas do José. Quando leio os meus apontamentos das aulas do José, recoloco-me, imediatamente, na sala e ouço a sua voz. É uma memória contínua. O mesmo exercício, já não poderei fazer com os apontamentos das aulas de Molder. As palavras de José eram mais complexas, mais difíceis, o discurso mais intrincado, mais denso e, no entanto, possuía uma estrutura interna com uma entrada e uma saída, independentemente das observações feitas por outros ou das oscilações de acontecimentos exteriores (como o bando de pássaros). Uma estrutura muito semelhante à de uma espiral. Curiosamente, Molder evocava, muitas vezes, nas suas aulas, a espiral como imagem de consistência (seguindo, também, a leitura de Louise Bourgeois), mas as suas aulas pareciam seguir um "modelo" rizomático (matéria das aulas de José). Daí os apontamentos das aulas de Molder serem tão ineficazes para mim, na medida em que não conseguem reconstituir uma memória contínua das suas aulas. O que lamento profundamente, porque, tal como o André, queria abraçar todas as suas palavras, para nunca mais as esquecer, tão fortes e exactas que eram. São memórias diferentes. De diferentes aulas, também. Com diferentes efeitos e um comum: o desejo da repetição. Há momentos em que acontece exactamente o contrário, as últimas memórias querem-se últimas. Destes, não.