sexta-feira, dezembro 02, 2005

O cão dos olhos azuis

Já não me lembro da última vez que fiz esta viagem de comboio (excepto hoje de manhã), já não me lembro de escrever no comboio sequer, esta experiência é ainda mais longínqua no tempo do que a da viagem só por ela. Mas enquanto vinha no táxi para Santa Apolónia, esgotada, com a cabeça encostada ao assento, de olhos fechados com uma fresta na janela a salpicar-me a cara de ar fresco, apeteceu-me imenso escrever. Não obstante o cansaço, tento. Quero mesmo escrever sobre o que de repente assombrou o meu pensamento. Na realidade, assombrou todo o meu ser. Meteu-me, novamente e como já há muito não experienciava, medo. Um cão de olhos azuis. Mas o mesmo cão de que falava há algum tempo atrás. Na altura era informe, apresentava-se-me como desconhecido, sob a luz dos faróis do meu carro à noite, entre o Coelho Branco e a Rainha de Copas. Hoje não, adquiriu uma forma de ser, entre cão e homem, um nome e uma cor de olhos. Os olhos deixaram de ser estranhos, ainda que apenas temporariamente, e obrigaram-me a olhar um todo, um outro todo que existe para além de mim neste momento e no qual eu me reconhecia como sendo eu. Enraivecida, pensei que seria meu o erro em pensar toda essa existência perante aquele ser.
Continua desconhecido, apesar do nome que lhe atribuo – sim, sou eu que lhe atribuo um nome e não ele que se diz por um determinado nome – e assim desejo que continue. Ainda que mande ao ar o Coelho Branco e a Rainha de Copas, desejo continuar por mais um tempo com o meu pensamento livre de ambiguidades. Ser, estar, ficar fora de mim por mais durante um tempo. Mas desconfio que a partir de hoje isso seja difícil, que seja difícil colocar-me face a uma total indiferença perante o desconhecido agora habitado por um cão de olhos azuis. O cão de olhos azuis obriga-me a olhar o mundo de outro modo. Com uns óculos especiais de lentes especiais e efeitos secundários (monocromáticos, porém). Estou mesmo a precisar de dormir, de descansar a minha cabeça, a minha pobre cabecinha.
E se o cão me morder? Fico com os seus dentes marcados na minha pele e grito? É esta incerteza que me prende a um tempo que afinal prefiro que ainda descanse em mim (e este descanso é idêntico ao dos mortos, em paz, sem alterar coisa alguma na existência, na minha calma e doce existência, no meu passar dos dias, na minha vida bonita, demasiado bonita, para ser justa para com ela). Sim, tenho medo de um cão de olhos azuis, mas não tenho medo de viver. Desta vez, as coisas não são assim tão simples. Há algo que escapa, que não compreendo, mas desejo profundamente conhecer, ainda que tenha medo. Existem em mim, naturalmente (neste momento muito específico são-me inerentes, amanhã deixarão de o ser), o desejo e o medo, a atracção e a repulsão por esse cão de olhos azuis. Todas as pessoas têm esse cão a olhar para elas. Eu apenas lhe vi os olhos e percebi a sua cor. A que enche agora a minha existência.