domingo, novembro 06, 2005

De quem fujo? Do Coelho Branco ou da Rainha de Copas?

O meu tempo voltou atrás. Não, não se trata disso. Mas voltou. Voltou de forma diferente, de uma forma diferente. Dizem que muitas situações se repetem, que a história é cíclica, que volta tudo outra vez. De facto, há sempre algo que volta e neste momento que atravesso existe esse algo que voltou. Custa-me defini-lo, porque permanece ainda informe na minha memória. E digo memória propositadamente. Primeiro, porque vejo nesse algo, algo de um passado não muito longínquo e algo de um presente que remete para esse passado, sem grandes coisas (a minha memória é muito pragmática nisso, ao contrário de... enfim!).
Na realidade não sei de quem fujo. Sei que não é de mim própria, mas é certamente de algo em mim. E do Coelho Branco e da Rainha de Copas, certamente. Mas como o tempo não se repete, nem volta atrás, nem pára, como posso eu fugir do Coelho Branco e da Rainha de Copas? Pelo desconhecido. Neste algo que me atravessa só consigo identificar algo desse tempo que ainda é reconhecível. Ainda por cima quando o Coelho Branco nos pergunta as horas! Ele está ali à nossa frente e não temos como evitá-lo, como desviar dele o nosso olhar e difundir o nosso tempo e o nosso espaço. É inevitável, porém eu fujo. A Rainha de Copas, no entanto, parece-me distante, aliás, continua a parecer-me distante. Mas é mentira. Tal como ela mente a si própria. Pior mentira, essa, não é? E numa esquina, encontro-a. Afinal, a distância era uma questão de "centímetros" de tempo. Em segundos, em instantes, ao virar de uma esquina, aparece-me a Rainha de Copas. Não diz nada, mas revejo no seu olhar todo um outro tempo. Aquele que deveria ser repetido.
As horas no relógio do Coelho Branco não param. Os minutos, esses podem parar. E suspender o meu tempo em lembranças, em memórias. Mas as horas não param. E ainda bem. Porque criam em mim esse sentimento duplo de não querer que o tempo pare e muito menos que volte atrás, mas que a memória, essa sim, possa voltar sempre que me apeteça num minuto suspenso. E me ajude a decidir. Se fujo ou não, já não é a questão. Tenho o Coelho Branco e a Rainha de Copas à minha frente. Já não posso fugir. Mas posso escolher e depois posso voltar atrás, porque o relógio do Coelho Branco pode parar num tempo sem que as horas parem de contar, e escolher de novo. Um outro tempo. Escolher sempre de novo. E a escolha torna-se sempre a melhor. A seu tempo.
Ia para casa Quinta-feira à noite. Não para minha casa, mas para a casa de uns amigos onde fico quando tenho de ficar em Lisboa de um dia para o outro. Não me lembrava muito bem do percurso e estava esgotada. O dia, ou melhor, a tarde tinha sido uma espiral de emoções (não digo sentimentos, mas sim simples, puras e reactivas emoções) e a noite começara por ser tranquila. Parada num semáforo, vi um cão. Um cão de rua (que afinal tinha dono) sob a luz dos faróis do meu carro. Nunca tinha pensado naquilo. Mas, não sei porquê, talvez por uma espécie de antecipação ou de colisão no meu pensamento pelos momentos imediatamente anteriores (o ter-me despedido de vários amigos), parei o meu olhar no olhar do cão. E vi-lhe os olhos. Se já sabia, nunca tinha prestado devida atenção (e de certeza que existem explicações científicas). Os olhos de um cão à noite sob a luz dos faróis de um carro desaparecem e aparecem. Desaparecem, porque se transformam num buraco. E esse buraco transforma-se em luz pura que surge aos nossos olhos como total e o buraco é um buraco e o cão não tem olhos e a luz que surge à superfície é a da profundidade do buraco. Ou, então, a luz enche a circunferência que delimita os olhos do cão com uma matéria ou com um fluxo material, palpável, tridimensional. E é outra coisa, uma matéria que nos é estranha. Os olhos do cão, por uns instantes, que eu não compreendo como um tempo comum a mim e ao cão, são outra coisa. São mesmo outra coisa. Porque os meus olhos à noite sob a luz dos faróis de um carro não são como os olhos do cão. Os meus olhos não suportariam tal luz! Num instante (e aqui o tempo é comum a mim e ao cão), eu fecharia os olhos. Instintivamente. O cão, não.
Na aula da manhã seguinte, o José (que não nos disse para o tratarmos por "Senhor Professor ou José", mas que eu tratarei, só aqui, por José) perguntava-nos o que é que acontece quando nós olhamos para um cão e o cão olha para nós. E isto sem que entre o cão e nós exista uma relação de sentimento, como aquela que existe entre nós e um animal de estimação. Sorri. Afinal a minha experiência da noite anterior não tinha sido assim tão estranha ou louca. A resposta do José não interessa para aqui. Interessa, claro! E muito. Porque as palavras do José são imensamente sábias (custa-me, aliás, atribuir-lhes qualquer ordem de valor). Mas os olhos do cão na noite anterior, sem que eu soubesse, disseram-me outra coisa que só pude compreender no fim da aula do José. O cão, o Coelho Branco e a Rainha de Copas pertencem todos ao meu tempo. O tempo que é só meu e no qual penso e escolho e vivo. Neste preciso momento, estão os três à minha frente.