sexta-feira, março 17, 2006

Coisas estranhas, coisas soltas

De momento, estou ausente da minha inteligência. Aliás, ultimamente tem acontecido muitas vezes ausentar-me, enquanto Susana, da inteligência de Susana (sem querer atribuir qualquer valor, a opção pelo termo é da ciência...). Considero pois que são dissociáveis e daí a minha inteligência permitir que eu me ausente de vez em quando. E nunca o contrário: a minha inteligência nunca se ausenta de mim (o que aparentemente seria mais comum, mas tão pouco a inteligência gosta de lugares comuns). Esta minha ausência tem, porém, uma razão (coisa estranha... não à inteligência, mas a Susana). Tão simples quanto esta: não quero nada, durante uns tempos, com a minha inteligência. Tal como não quero nada com pessoas complicadas (não complexas, complicadas... obviamente são diferentes pessoas e, acima de tudo, pessoas diferentes). E porque me contamina de tal forma com o seu limite que tudo em mim deixa de ser Susana. Parece não fazer muito sentido, mas no momento, neste preciso momento em que me ausento dela, vejo como ela me limita tanto... Talvez assim faça mais sentido.
Uma vontade que tenho já há alguns dias... Não consigo precisar quantos. Não são muitos, mas parecem ter sido. Queria transcrever para aqui algumas notas sobre dois momentos importantes do tempo em que vivi em Barcelona (sim, há três anos! Os tais...). A razão também é simples, ainda que não seja estranha, mas apareça aqui mais ou menos solta, desligada, do tempo, do espaço, de tudo! Mas, mais uma vez, circunscreve-se a uma aparência. Hei-los:
Novembro, 19
Ontem não consegui escrever pois ainda estava emocionada demais, as palavras com certeza não iriam acompanhar o meu estado de euforia. Dia após dia enamoro-me desta cidade: os encantos que possui são infinitos. No Sábado, fomos assistir à passagem de uma película de animação dos anos 20, em simultâneo com o concerto (ao vivo) da sua "banda sonora", no hall do CCCB. Sentados no chão, deitados em almofadas, com pequenos e pontuais focos de luz, sentia-me em casa. Não, ainda não consigo descrever aquele momento. A história de encantar também – passava-se algures numa terra Spirito e era sobre um príncipe, uma princesa, Aladin, magos e bruxos, génios de lâmpada e outros mais, e a música mistura de violinos, baixo e sintonizadores. Lembrei-me, sempre, desde a primeira imagem, até "the end", de ti. As pessoas que estavam ali eram interessantíssimas e queria muito conhecê-las, mas cada vez mais desejo voltar para ti – este sentimento acentua-se com o passar veloz dos dias e do encantamento que vou possuindo pela cidade. Mas é a incompreensão de determinadas coisas, valores e ideias, que acentuam a minha visão daquilo que seria bom para mim. Neste momento, tu!
Novembro, 22
Ontem fomos ao cinema ver "Jonas in the desert", de Peter Semple. Chegámos apressadas a uma sala em tons vermelhos de luz. A tela ainda era branca tal como as toalhas das mesas que ocupavam a pista de uma discoteca mais tarde (soube-o quando exclamei – é bonita!): Nitsa. O filme era independente e nós também, daquele espaço, porque permanecia intocado por nós. As pessoas que o habitavam eram-nos estranhas, embora familiares ao olhar. Repetem-se em eventos deste tipo, consomem cultura alternativa, às vezes podem nem saber porquê... o filme era em inglês. Dizia Jonas que um filme independente era a liberdade de fazer libertar-se das formas e funções do cinema corrente. Era a visão de um homem, a sua expressão isolada como qualquer tela de Van Gogh, Gauguin ou Cézanne. A alternativa era o ser só – no deserto. Mas se a expressão é única, a multiplicidade dos seus frutos não o pode ser. Inúmeras pessoas apareciam a referir o quanto Jonas é especial e influenciou a sua arte. Estou numa fase de redescoberta após um ano de mudança. Várias pessoas, ao longo do ano passado, disseram que eu estava diferente. Não tinha notado, quer dizer, tomava determinadas posições que não eram habituais em mim, mas sentia-me bem. Era um novo hábito, a pele era minha porque a sentia. Neste momento, talvez pela experiência que estou a viver, tento clarificar quem sou e o que quero do futuro, quando regressar, por exemplo. Sempre fui por querer algo – sem o desejo e a paixão não sou alguém. À entrada da Sala Apolo ou Nitsa fixava várias pessoas e houve um rapaz de olhos azuis que deparou, por alguns segundos, o seu olhar no meu. Hoje recordei esse momento algumas vezes, mas não sei ainda qual o significado. Interrogo-me sobre a felicidade aqui: todos os momentos são efémeros, mas trazem um encanto inscrito neles. Tenho saudades, muitas, mas são tantas as coisas que me seduzem também... e sobretudo que vão passar a ser intrínsecas a quem sou.

Em jeito de nota: voltar atrás no tempo não tem significado algum. E ainda bem! O que permanece e o que me fez rescrever hoje estes dois excertos, dá-los a conhecer, é exactamente o mais irrelevante das minhas palavras. O mais banal. E, no entanto, o que ainda me faz pensar. O que ainda me move.
Vinha na viagem (exausta!) a pensar nas minhas ausências. Ouvi um único cd durante a viagem inteira, repetidamente: o último dos Mercury Rev. E uma música em especial mais vezes ainda.
Ain't it amazing when the seasons begin to change
Someone behind the scenes to pull some strings
I struggled with an old angel all nite long
I thought it might be nice if we talked 'til dawn
I never gave you... enough
I could've given you... my love
[E continua...]
Uma outra coisa solta. As aulas da Molder. Algo permanece em mim continuamente. Sempre fui por querer algo. Ou, como o meu pai dizia ao jantar a um amigo da família muito especial, após contar-lhe a história que tantas vezes conta: como é que eu passara a dormir sozinha no quarto com poucos meses de Vida. Acrescentando logo a seguir: "Também é por isso que é a mais independente". Só pude sorrir. Ser independente para o meu pai é exactamente o mesmo que para Peter Semple (coisa estranha...). E é-o na mesma medida que diz que eu não ando neste Mundo, ando noutro. Aí a minha expressão já não é a mesma. Também porque a graça com que diz não é a mesma. Perde toda a graça. Claro que para mim não! São a mesma coisa: ser independente e não pertencer a este Mundo. Ao meu mundo, pertenço de certeza! E nele sou independente. Ou: por ele sou independente! As aulas da Molder são fantásticas! Perturbadoras. Hoje aconteceu... uma coisa estranha. Completamente ausente (mas a ouvir atentamente), senti que algo de errado se passava com quem estava ao meu lado. Olhei e não vi qualquer sinal exterior de problema algum e, no entanto, quando lhe toquei levemente nos braços que encobriam o seu rosto e perguntei se estava tudo bem, constatei o mais horrível dos pressentimentos. Tudo o que Molder nos diz, ataca-nos. E cada um reage de forma diferente, mas, ao mesmo tempo, de forma idêntica. Tudo o que Molder nos diz, diz-nos sobre o nosso mundo. Sim, esse que só nós conhecemos e nos dizemos nele. O mundo que nos segura quando caímos em nós. Esse mundo que, por vezes e para alguns, se torna insuportável ou, pelo contrário, tão confortável que nos impede de regressar. As minhas ausências também têm a ver com isto. Nem tudo o que é estranho, é solto... nem o que é solto, é estranho.
Legenda: Eu, hoje, durante uma ausência.