sexta-feira, outubro 05, 2007

"São apenas palavras."

“São apenas palavras,” Martin Frost.

Confesso: estava nervosíssima. Não tinha motivo algum, apenas o de vislumbrar de longe um dos meus escritores preferidos. Mas, a imagem que dele construíra, ainda que desse olhar de longe, distante em tudo, era essa de um homem inatingível. Creio que as palavras quando são sublimes, perfeitas, parecem-nos irreais (como quase todas as coisas sublimes e perfeitas), fazendo-nos acreditar que jamais poderiam sair (nascer) dos confins do pensamento de alguém, que é idêntico a nós, que gosta de coisas simples como nós. E Paul Auster é tão simples, que a sua simplicidade confunde-nos ainda mais. Já não bastava duvidar da existência das palavras como reais, como elas, afinal, dizem coisas tão simples quanto a sua própria banalidade. “São apenas palavras.” O que são as palavras comparadas com um grande amor? Martin não hesitou. Não são nada. E esta foi apenas uma das coisas em que me revi em “The inner life of Martin Frost.” Tal como nos livros de Paul Auster, o caminho até às palavras não é directo. Não é o caminho até ao seu significado, mas o salto que se tem de dar, para se compreender o reflexo da palavras em nós. A sua ressonância. O seu eco. Por isso tanto admiro Paul Auster (e já aqui escrevi várias vezes sobre esta minha admiração ou sobre a sua contaminação nas minhas próprias palavras, no meu pensamento). As palavras serão sempre insuficientes, quando dizem a melhor coisa do mundo. Nada mudou desde há alguns posts atrás.
Logo no início do filme, Martin conta como as histórias aparecem, de repente, na cabeça com uma estranha definição. Num minuto não estão lá e, quando menos se espera, na volta de outro e novo minuto, já lá estão, como se tivessem sempre estado lá. E a definição é estranha, porque os contornos estão todos definidos, com uma clareza assustadora, impedindo-nos de corrigir um pormenor que seja. Já há muito que sinto isto. Lembro-me de outro post sobre este assunto. Não é por Martin ser escritor que revejo nele muitas das ideias que já passaram algum dia pela minha cabeça. Mesmo quando estou ocupada a pensar num projecto, numa pequena ideia para algum objecto, acontece-me, exactamente, o mesmo. Apetece-me pensar que é próprio do mundo das ideias. Da ciência das ideias (recuperando o título desse post). Uns minutos à frente, perto do fim do filme, Martin é confrontado com a sua tristeza e responde a Fortunato (a personagem divertida de Imperioli) que acabara de escrever uma história, dando-lhe essa impressão de um sentimento de vazio, de ressaca, de melancolia, quando se termina de escrever uma história, uma vida, que lhe ocupara todos os minutos da sua existência até então. É verdade. É uma outra vida paralela, que nos faz esquecer a nossa, que corrói a nossa, tão forte que surge na nossa cabeça, que deixamos de pensar por nós e passamos a ser outros e outras coisas (para relembrar outra minha paixão...). Na realidade, Martin apenas dera esse sentimento como desculpa, pois o que sentia era a ausência de Claire. Mesmo desculpa, no entanto, esse sentimento atingia-o. E Claire existia apenas na história. Só a história lhe dera existência.
Depois, existem aquelas imagens lindíssimas que, quando fechamos os olhos a pensar num determinado filme, nos vêm à cabeça. O filme não é um filme extraordinário (como disse o Gonçalo), embora lendo-se Paul Auster não se possa senão gostar daquele filme, das sucessivas e subtis citações à sua própria escrita. Ali, o que está em causa, talvez não seja mesmo o cinema, mas a palavra filmada. A sublinhar o facto da própria história ser sobre um escritor e tudo o que acontece dentro da cabeça de um escritor, quando este se apercebe que as palavras são apenas palavras e, no entanto, nunca deixam de ser palavras vivas. Que dizem até a sua própria vida. Que criam a sua vida, que não existe sem elas. Retenho com uma enorme precisão os momentos que achei mais bonitos. Uma sequência em particular: o escritor/narrador fala sobre formas. Uma primeira imagem das estranhas formas que o fumo, de um cigarro talvez, desenha sobre um fundo preto. O fumo de uma chaleira, era, no entanto, esvaindo-se lentamente no ar. As formas onduladas de uma cortina que deixa passar as pequenas partículas de luz para dentro da sala que não se vê. As formas, a estranheza das formas, como são tão belas que não conseguimos explicar, mesmo com palavras. Talvez seja essa outra das dificuldades das palavras: igualarem-se a imagens tão belas quanto aquelas. É aí, também, que a palavra filmada se torna mais complexa e difícil. Outras imagens inesquecíveis: Claire a desmaiar e a cair na relva num gesto perfeito. A inclinação do seu corpo, a rotação do seu torso, o peso que desaparece da própria imagem. Não é o corpo de Claire a cair que é filmado, mas o desmaio, enquanto perda total de um peso que nos prende à terra. E outra: a imagem do pneu, que Martin tivera de comprar para trocar o pneu furado, a deslizar, com toda a velocidade, pela estrada. Mais uma vez, não é o pneu que é filmado, mas a sua velocidade e, no fim, a sua aleatoriedade e diversão. É uma sequência única que nos faz querer ser pneu. Tudo o que a imaginação permite. Afinal, o que seria da nossa vida interior sem imaginação? E a imaginação sem coincidências?