sábado, outubro 29, 2005

O começo

O começo. Assim iniciava uma aula, o Pedro. Com o que é o começo. Pelo meio dizia-nos que muitos escritores começam a sua obra com apenas uma frase. Porque um escritor nunca sabe o que vai escrever, nunca sabe o que será o fim daquilo que inicia no momento. Arthur Miller construiu uma cabana para escrever a sua obra e durante todo o tempo tinha apenas uma frase na cabeça, uma só, a do começo. Virginia Wolf, idem. Contava-nos, o Pedro. Entre outras coisas. Como os dedos sabem mais de palavras do que a cabeça. Como quando se pensa no que se escreve, sai tudo mal. Entre outras coisas.
Entretanto tínhamos passado, também, a outra pergunta e a outra. Foi uma aula de perguntas, sem respostas. Nem creio que as vá encontrar e muito menos ali. O Pedro não gosta de palavras difíceis. Como o compreendi! Se puder dizer tudo o que quero que o outro saiba e ouça com palavras fáceis, com palavras simples, serei mais feliz. Fica tudo reduzido a si próprio. Sem dramas, sem metáforas, sem imagens, sem crises de histerismo ou de loucura. As coisas e as palavras que dizem as coisas reduzem-se e resumem-se a elas mesmas. Sem grandes artifícios, sem grandes malabarismos frenéticos entre composições frásicas. É aquilo e ponto final.
O Pedro gosta muito de Coimbra. Inclusive, já escreveu sobre Coimbra... "Cidade Estrangeira", recorda-se, entretanto do título do que escrevera em tempos. E gosta do "Portugal dos Pequenitos". Não é "Portugal dos Pequeninos", dizia, mas "dos Pequenitos", o que faz toda a diferença. De facto, faz. E ri-se. Com uma enorme gargalhada, estrondosa: faz uma pausa propositadamente, olha-nos a todos e começa com um primeiro "Ah!" solto e louco, ao mesmo tempo. Sobe imediatamente o tom e é impossível conter o riso perante a sua gargalhada. Num instante, estamos todos a rir sem saber muito bem porquê. Ainda agora me rio só de ouvir a sua gargalhada outra vez. É bonita.
"Descongestionante", dizia o João da aula do Pedro. Eis uma palavra fácil para a descrever. A sensação é muito idêntica. Serviu para desentupir a cabeça de conceitos, de palavras difíceis, de palavrões, de preconceitos. "Tratem-me por Senhor Professor ou Pedro". Fascinante, sem dúvida... Apesar de toda a loucura que o abraça e que lhe faz tremer as mãos ou falar do filho de quinze anos como estivesse a falar de um puto de quatro. Ou que o obriga a fazer pausas demoradas entre as palavras simples e os pensamentos simples para respirar. E a sua respiração ouve-se. Também é extremamente sonora, embora não tanto como a sua gargalhada. E uma faz rir e a outra não...
Foi um excelente começo! A par de um outro que, apesar do seu início ter ocorrido há algumas semanas atrás, ganha outras formas e contornos e nomes. Começamos a conhecer-nos uns aos outros, a saber aquelas coisas simples, ora aí está!, mas muito importantes. E é maravilhoso. Já não faço todas as viagens sozinha. Ontem já me sentei a descansar no café de Santa Apolónia acompanhada
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quinta-feira, outubro 27, 2005

Alguém

Uma das coisas que mais gozo me dá nas minhas viagens periódicas a Lisboa é começar a conhecer determinadas pessoas e saber um pouco delas sem estas sequer suspeitarem. Também eu só dei conta quando, ao pedir um galão num pequeno café em Santa Apolónia, ao meu lado, uma empregada de limpeza loura e alta pedia um café. Foi instantâneo: sorri.
Estávamos em Setembro, eu cansadíssima, descansava um pouco nos bancos desse mesmo recinto do café, à espera da hora do comboio. Ela estava sentada uns bancos à frente e de lado. Eu via-a a três quartos, reparei nela pelas marcas que tinha no corpo, invisíveis porém, de um passado difícil. Segurava um cigarro e contava orgulhosamente à empregada do café que a filha tinha entrado em Psicologia na Universidade de Lisboa, "na pública", dizia com respeito. A filha tinha 25 anos e agora entrava para Psicologia. Estava feliz! O tempo que o cigarro lhe demorava nos lábios não era reflexo algum de nervosismo ou de medo, era de felicidade. Tinha o cabelo apanhado com uma mola atrás da cabeça e tinha acabado de tomar café. Hoje, trazia o cabelo solto e pedia o café quando sorri.
"Quero um café não muito cheio, mas também não muito curto". Sorri, novamente. Segundos atrás tinha estado eu a pedir o meu galão com uma série de exigências. Volto ao início. Começo a construir uma série de histórias sobre várias pessoas de Lisboa. Uma das coisas que mais aprecio no meu dia a dia em Coimbra (apesar de vários amigos não compreenderem esta minha obsessão por uma certa decadência a que a cidade está inerente) é esse sentido de pertença que comungo com a cidade e com as pessoas. Gosto de andar pela baixa, pela praça, pela Universidade e sentir que conheço alguém, que alguém me encontrará subita e inesperadamente e me coloca ali. Em Coimbra, custa-me estar num café sentada sozinha. Em Lisboa, não. Sou exterior, assumo-me como exterior e nem mesmo quando aí vivi me senti menos exterior. No dia em que me despedi de Barcelona, há três anos e meio atrás, ia comprar o pão e era cedíssimo, as ruas ainda estavam muito calmas, e naquele percurso que já me era familiar e comum, pensava como me tinha enganado em relação à felicidade numa cidade como aquela. Adoro-a. Mas lembro-me de apontar algures numa folha solta que não era a cidade, cidade alguma!, que determinava a felicidade no tempo e no espaço. Andava, por aquela altura, envolta nos meus pensamentos acerca da felicidade no (e pelo) espaço e no (e pelo) tempo. Despedia-me da cidade com esse pensamento na mente. Regressava ao lugar em que me sentia presente.
Decidi ir mais cedo para Santa Apolónia. Ainda faltava uma hora para o comboio, mas apetecia-me descansar um pouco. E aproveitava para comprar umas castanhas assadas. Também já conheço o Senhor das castanhas de Santa Apolónia. E também ele me reconhece. Tal como reconhece o meu pai e nem sequer suspeita que aquele Senhor que lhe compra duas dúzias de castanhas para a filha é o meu pai. Também não sei se o meu pai será o único pai a fazê-lo, mas a ele, ele dá-lhe um saco de papel. Já o conhece. Pode parecer leviano dizê-lo, mas não. Há uma parte do meu pai e de mim que aquele Senhor conhece e pode mesmo saber mais do que o que eu penso que ele saiba. Já pode saber, inclusive, os dias em que o meu pai, por exemplo, lhe compra as castanhas e a hora em que normalmente apanha o comboio e o que o traz a Lisboa, sem o meu pai nunca lhe ter dito coisa alguma. Tinha que esperar um pouco. Porque sairiam castanhas quentinhas daí a dois minutos. Tinha tempo, esperei. Enquanto esperava, pude observar o carrinho das castanhas. Uns dias antes, a minha mãe dizia-me que eu tinha que tirar uma fotografia ao Senhor Zé. O Senhor Zé está todos os anos, por esta altura, na praça da República em Coimbra a vender castanhas assadas. Já o conheço há anos, já o trato pelo nome, também. E o carro do Senhor Zé é fantástico! "Tenho mesmo que lhe tirar uma fotografia", pensei enquanto observava o carro do Senhor das castanhas de Santa Apolónia. As castanhas assadas do Senhor Zé são sempre as melhores. Creio que agora saiba porquê... Tudo depende do carro. E o do Senhor Zé é único. Imagino que tenha sido ele próprio a construí-lo e a pintá-lo de azul. Para a próxima pergunto-lhe.

terça-feira, outubro 25, 2005

O horror

Não podia ser pior. Arrepio-me sempre que entro por aquela porta. A porta que nunca sei abrir. Sei, mas faço sempre por esquecer como se abre. Talvez porque desejaria nunca ter que a abrir. Mas quase todos os dias a abro. E sei o que me espera três andares abaixo daquele em que a abro. O elevador é mais rápido do que aquele nos edifícios vizinhos. Também não esperam por ele aquelas centenas de pessoas às três da tarde (normalmente...) que depois desatam a correr para não correrem o risco de ficar à espera do outro. O cheiro também não é o mesmo, é diferente. Mas o ar... o ar causa-me náuseas e arrepios, uma sonolência no corpo, uma dormência na cabeça... É raro o dia em que não suba de volta à superfície agoniada pelo que sinto naqueles breves minutos na minha visita àquele local. Também é este um momento fora de mim. Aquela é a realidade de... nem sei quantificar quantas pessoas! Milhares? Sim, deverão ser milhares de pessoas. Mas de algumas conheço-lhes o rosto. O silêncio. O olhar. A espera. E tudo. Tudo por entre uns minutos que parecem ser sempre infinitos ou mesmo inexistentes, porque é um tempo que não se quantifica, é um não-tempo. Daria todo o tempo para nunca mais voltar ali. Ou para que o meu tempo se suspendesse naquele preciso momento em que eu abrisse a porta, me transformasse em bola de sabão, flutuando no ar me dissolvesse por entre as pequenas partículas, que ainda restam, de alegria naquelas vidas. Aquelas não gosto eu de observar. Desvio-lhes o meu olhar. Tenho medo. Muito medo de olhar para elas e ver todo o seu horror. Pressinto-o e imagino-o muito maior, infinitamente maior, naquilo que elas me diriam. Pelo olhar, pelo silêncio. Mas seria certamente imenso. Uma olho-a em particular e a dor é inefável. Só consigo... aguentar. Dificilmente. Mas ajuda pensar: falta pouco. Em breve esquecerei todo aquele mundo, voltarei a ignorar todo aquele horror e a julgar que há coisas que só acontecem aos outros. Não o digo com ironia, nem com desprezo... apenas com vontade de nunca mais abrir aquela porta. Dói demasiado. E naquele falso jardim, três andares abaixo, não há coelhos a saltar.

quinta-feira, outubro 20, 2005

20.10

Outro dia importante. Outro dia em que as palavras ficam muito aquém do que se espera delas. Não das minhas, delas próprias... Deveriam ser elas próprias a festejar este dia e eu com elas. Porque de certo modo também eu não posso existir sem elas, sem a sua presença e existência absolutas. Serei incapaz, por isso mesmo, de as proferir com leveza e destreza suficientes para tudo dizer quanto e como foi este dia.
No fim, a Madalena perguntava-me com uma estranha certeza de que teria sido óptimo, como é que tinha sido este meu dia. "Calmo", respondi-lhe. Mas agora vejo como fui injusta com ele e comigo própria. "Foi fantástico!", deveria ter-lhe dito. Porque foi.
Espero sempre suspeita por este dia. Tem-me sido marcado por razões mais distintas, que nunca sei o que hei-de esperar dele. E se de facto fora calmo este, houve determinados momentos em que me desdobrei em estados antagónicos. A felicidade de ouvir determinadas vozes e a angústia sufocante de encontrar as palavras certas para lhes responder e a surpresa de encontrar alguém, no meio de um mundo de nada, que disse pouco mais do que o que eu já sabia - que o meu avô era imensamente bom - mas me fez recordar o sabor agridoce das lágrimas e de um momento fora de mim. Tive ausências neste dia, também. Essa ausência no momento em que me deixei levar pelas recordações demasiado ténues e enuviadas do meu avô. "Sim, ele já morreu há muitos anos, era eu muito nova", respondia àquela Senhora a quem o meu avô tinha ajudado a fugir de casa dos pais e a casar com o ainda marido, porque os pais a maltratavam, a batiam, a impediam de ser feliz... "Eu era muito nova..." Dizia no dia em que o tempo muda tão pontualmente para mim. E, depois, todas essas ausências, insignificantes porém (aliás, descobrimo-las insignificantes no preciso momento em que denotamos a sua ausência), de outras palavras, de outras vozes. Afinal, redescubro-me sempre neste dia.

quarta-feira, outubro 19, 2005

As três irmãs Luísa, Lurdes e Laura

Uma tinha ar de escritora ou até de pintora. Extremamente bem arranjada, sofisticada não obstante os setenta e poucos anos que aparentava. Lábios pintados de um rosa claro mas opaco, uma pérola em cada orelha, o cabelo arranjado. Ao seu lado, a irmã mais nova, mais recatada, mais discreta. Tinha uns óculos pendurados no peito, os mesmos brincos de pérola, permaneceu quase sempre de olhos fechados, a dormitar. De vez em quando, degustava uma pastilha de chocolate. Era a mais gulosa. À sua frente, o pacote de pastilhas de chocolate e o pacote de Mentos de menta. A terceira irmã viajava de costas. Vi-lhe, inicialmente, apenas o cabelo nos mesmos tons dos das outras duas irmãs e as pernas cruzadas denotando um certo ar de sofisticação e ao mesmo tempo de autoridade (era a irmã mais velha), confirmado pelos apliques dourados nas hastes dos óculos de sol de massa castanhos. Os óculos de sol da primeira irmã eram mais simples, também de massa, mas pretos e com um formato rectangular ultramoderno. As duas primeiras irmãs eram tão diferentes e, no entanto, tão idênticas. As semelhanças físicas eram tremendas. Se não fosse a diferença de idades visível, podia mesmo indagar se não seriam gémeas. Mas depois eram tão diferentes. A primeira vestia um fato de saia e casaco castanhos e uma camisola fina de malha em tom pérola por baixo. Atenta à moda ou porque já seu costume, uma pregadeira em forma de flor com as pétalas em âmbar na lapela do casaco. A segunda irmã era sem dúvida mais pragmática: umas calças castanhas e um casaco impermeável. Além dos brincos, não tinha qualquer outro adorno. Nem lábios pintados, nem mãos arranjadas. A terceira irmã, continuava, a revelar-se-me de costas. Os lábios, num movimento delicado do torso, apareciam pintados também, embora num tom mais sumido. As mãos, no entanto, destacavam-se. Entrelaçadas uma na outra, mais ou menos ao nível dos seus olhos, o tom prateado das suas unhas deixava transparecer um outro cuidado e, no entanto, uma posição de quem já tinha visto tudo na vida e pouco queria saber para além de estar e divertir-se com as duas irmãs. Nenhuma das outras irmãs tinha as unhas pintadas. As mãos cuidadas, mas nuas.
Sentia-me fascinada a olhar as três irmãs, a desvendar a cada gesto um pouco do que eram ou do que transportavam em si. Lembrava-me daquela peça de Peter Handke "A Hora Em Que Não Sabíamos Nada Uns Dos Outros" e de como eu sempre gostara de observar as pessoas, os seus movimentos, o seu olhar, tendo muitas vezes que distrair o meu com outras coisas para não criar suspeita. Mas era inevitável. As três irmãs haviam prendido o meu olhar desde o primeiro instante em que me sentei num lugar que não era o meu naquela carruagem. E tornaram a minha viagem muito mais divertida.
Tinham apanhado o comboio no Porto. Iam a Lisboa visitar um amigo que tinha uma colecção de arte sacra fantástica. Até há poucos dias, não suspeitavam sequer o seu interesse por esse tipo de arte e foi uma surpresa enorme quando descobriram. O Pestana demonstrava sempre uma certa repugnância, resmungando entre dentes quando o assunto vinha à tona, pelos temas do Sagrado. As irmãs sorriam entre si maliciosamente, nada diziam, mas tudo pensavam. Elas, por outro lado, interessavam-se por esses temas, porque sempre haviam estado presentes ao longo da sua educação. Os pais colocaram-nas, desde cedo, num colégio interno de freiras, embora não processassem fé alguma. Mas reconheciam-lhes, às freiras, certas qualidades de boas preceptoras e desejavam a melhor educação possível para as suas filhas. Cada uma aceitou à sua maneira. E cada uma é diferente da outra.
Chegámos ao Oriente. As três irmãs levantaram-se calmamente e dirigiram-se para a porta. Certamente que apanhariam o metro para o Chiado
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sábado, outubro 15, 2005

Uma tarde de Sábado e quase uma noite de lua cheia

Nunca pensei que poderia ser assim o meu reencontro com Deleuze. Desde ontem que percebi que aconteceria muito em breve, porque passarei a ler e reler os seus textos lindíssimos. Mas dificilmente esperava que esse reencontro sucedesse hoje e de forma tão bonita. Uma perfeita tarde de Sábado, vou até ao centro comercial mais próximo (sim, como tantas outras pessoas que povoam esses sistemas aos fins de semana, mas que nem mesmo o aspecto de labirinto do jardim da Rainha de Copas, me deixa particularmente feliz por ter que o habitar por breves, mas densos, instantes) comprar uma prenda de aniversário para a minha cunhada (sabia também que já a deveria ter comprado, até porque nestes sítios, ao contrário do que pretendem simbolizar, não abunda a diversidade, no seu sentido, claro, de diferença), aproveito para ver as novidades na Bertrand, que agora adoptou esse conceito Fnac com um toque de hospitalidade portuguesa (cantos e recantos para todos os tempos e momentos) quando o encontro, ao virar de uma página do livro de Eduardo Prado Coelho. Um reencontro indirecto, é certo, mas que me fez crer que estava verdadeiramente na sua presença. Do seu pensamento. As palavras de Eduardo Prado Coelho conseguiram emocionar-me na sua simplicidade de resumir toda uma vida e a vida, o conceito mais extraordinário de Deleuze. O sim à vida, à alegria. Em todas as suas complexidades e desdobramentos. Não quero reproduzir as palavras exactas de Eduardo Prado Coelho, têm que se descobrir. Essa é uma experiência íntima. A minha foi.
A minha opção torna-se cada vez mais presente. Há... quantos anos? Creio que há três anos... iniciei um outro percurso na minha formação. Não, não quero dizer "na minha formação", mas talvez antes "na minha cabeça". Entretanto, peguei no carro e fui até outro centro comercial e parada num semáforo pensei: como é que aquelas palavras me podiam ter exaltado de tamanha alegria e eu pensava-as, pensara-as sempre, na sua aplicação mais quotidiana possível e observava, daquele semáforo vermelho, as pessoas a convergir para um espaço alienado de tudo quanto aquelas palavras poderiam significar para mim e eu desejava aplicar a esse mesmo espaço quotidiano, da vida de todos. A velha questão torna-se proeminente: por que é que os arquitectos se interessam tanto pela filosofia e, neste século especificamente, por Deleuze e Derrida? Escapa-me qualquer coisa. Será essa que tentarei encontrar nos próximos tempos? Parece-me, e essa ideia não veio nesse momento parada no semáforo vermelho, que há um desfasamento qualquer entre realidades. Mal arranquei, sucumbi os meus pensamentos novamente à prenda para a Fátima.

sexta-feira, outubro 14, 2005

14.10

Continuo a saltar de felicidade, ando aos pulos desde as três e pouco da tarde! Que felicidade...
14 de Outubro transformou-se naqueles dias que nos perseguem ano após ano. Relembrar-me-ei dele várias vezes no futuro. Já me era marcante este dia e hoje tornou-se mais ainda. O sorriso ainda não abandonou o meu rosto, nem o meu coração. E para já, nem sequer quero pensar no que vou ter que cumprir e a que me propus. Por agora, quero apenas deliciar-me com o momento... É tão bom propormo-nos a algo e o momento chegar quando menos se espera (embora eu ansiasse já há muito por ele) e depois gozarmos essa pequena alegria no nosso corpo: uma pequena cócega na barriga e um marshmallow a desfazer-se na boca.

quinta-feira, outubro 13, 2005

Follow the rabbit and flowers will grow under your feet

Estava imensamente aborrecida. Mais um daqueles dias em que tinha que ir a Lisboa fazer uma coisa qualquer. Eu até gosto desses dias, da viagem calma de comboio, da tranquilidade do bolo de chocolate junto a uma ténue linha de água e do frenesim das sete horas da tarde. E do regresso. Gosto sempre imenso sem nunca desejar voltar e desejando sempre do regresso. Era um dia especial também. Daqueles em que temos de fazer um telefonema que nos custa, esse em que vacilamos a voz, esquecemos as palavras e sentimo-nos fora de nós, sem conseguir controlar o mais pequeno movimento do nosso cérebro. Antecipamos sempre o momento e eis que ele surge pior ainda do que poderíamos sequer ter imaginado (assim foi).
A contar os minutos, a convencer-me a mim própria de que tinha que o fazer, telefonar-lhe. Descia lentamente a avenida da Liberdade, sem grande vontade de dar um passo que fosse em relação a esse tempo próximo, muito próximo. Lembrei-me! Já tinha passado pela enorme porta da estação do Rossio, mas volto atrás. Um rodopiar de apenas dois passos, também. Entro. Afinal queria ver uma das exposições da bienal da experimenta que faltava "experimentar". E, por uns instantes, abstraí-me do tique-taque tique-taque...
Um coelho! A correr pelo chão assim que o tento apanhar! E flores! A nascer e florescer mesmo debaixo dos meus pés... Corro para um lado, volto para o outro, apressadamente, quero ver o coelho saltar mais uma vez. Rio-me! Com uma larga gargalhada solta e espontânea! (Nem imagino o que alguém possa pensar se ouvir... fez eco!)
Um clic! na minha cabeça. Tantas vezes que ando à volta com essa ideia de alteração de um espaço na experiência da intimidade... e um espaço que faça sorrir, ainda por cima! Pareceu-me (quase) perfeito. Imaginei um mundo inteiro assim. Com coelhos a saltar e flores a nascer por debaixo dos pés! Não seria perfeito? Não, sei que não... Mas um mundo inteiro em que o espaço desaparecesse por debaixo dos pés, enquanto nascia outro acompanhado de mim. Da minha tristeza, da minha alegria. Sei que há espaços assim, não quero, nem penso nesse virtual de que (quase) todos falam e de que (quase) todos pensam que é apenas um espaço gerado por computadores ou o espaço cibernético ou mesmo um espaço futuro desconhecido de que se tem uma vaga ideia através de formas estranhas e informes... Tento sempre pensar num espaço virtual aqui. Aquele que será sempre virtual no momento exacto em que me coloco face a ele e me desdobro para compreender as suas mais estranhas faces. Gosto de sorrir! Gosto muito de sorrir...

O coelho da Alice

Dizem-me que ando sempre com a cabeça no ar, que não tenho os pés assentes na terra. Como posso responder? "Obrigado, mas não obrigado". Ouvi a frase ontem, mais especificamente "Thanks, but no thanks". A alteração não muda o sentido, às vezes poderia alterá-lo, mas desta vez não. A todos os que me dizem essas frases feitas de alguém muito sisudo em dias cinzentos de chuva, respondo com um enorme sorriso e de voz bem aberta "eu gosto de ser assim". Bem... talvez nem seja uma questão de gosto. De modo de vida? Também não me parece... De sobrevivência? Nem pensar! Não tenho que atribuir significado algum à minha existência em cada dia que passa. Posso simplesmente de gostar de ser um pouco Alice. Ainda que este país não seja propriamente aquele das Maravilhas... Mas posso recriar um outro país, acreditar noutras coisas para além daquelas que todos discutem e com as quais todos se preocupam. Posso optar, e esta sim é uma opção com significado, por viver fora de mim. Quem é que nunca o desejou?