domingo, maio 20, 2007

Cidade recriada: a legenda

Depois das imagens, o pequeno texto. Ultimamente, as minhas palavras repetem-se como se eu me repetisse também. O pior, é que não tenho desculpa alguma para essa repetição e sinto mesmo que ando a repetir-me. Por outras palavras: ultimamente, não sinto evolução alguma em mim e nas minhas palavras. E como dependo delas! Comecei há alguns dias a escrever o texto da estrutura da minha tese. Tenho ideias muito claras, a estrutura do próprio texto ordenada ponto por ponto, mas não consigo escrever o quer que seja. Ou o que escrevo, sai forçado, sem fluidez, sem sentido. Como se eu me perdesse por todas as palavras, por todas as sílabas, as letras, os pontos finais. Mas não era sobre esta minha dificuldade que queria escrever, mas sobre o concerto dos Bloc Party. E, de certeza que vou repetir alguns adjectivos, daqueles que digo sempre que deliro com algum concerto. Já me haviam dito que os Bloc Party ao vivo tinham uma força estrondosa e foi, de facto, extraordinário sentir o pequeno espaço do coliseu completamente cheio de pessoas aos saltos, em simultâneo, como uma avalanche difícil de segurar. O suor escorria pelas costas de cada um. O cabelo molhado junto ao pescoço. Um calor insuportável. Mas era impossível parar, impossível não saltar. Era uma força efectiva que se sentia, uma força inexplicável, que vinha, não só da música, como também não vinha apenas da plateia, mas de um acontecimento único, gerado entre as duas, preciso daquele momento. Existia, também, a acentuar, um conjunto enigmático de luzes. Por vezes, serpenteadas. Outras vezes, altas, enormes, fixas. Outras, divertidas, a correr de uma ponta para a outra, em gestos simulados. Flashes rápidos, colorações distintas, abruptas e cada vez mais rápidas, velozes, estonteantes.
Entristece-me. Ultimamente, não assisto a grandes concertos. Ouço grandes bandas a tocar ao vivo (extraordinárias!), mas tenho algumas saudades daqueles concertos em que existe uma perfeita combinação entre cenário, luzes, adereços, a roupa dos artistas, as suas expressões (enfim, toda uma mise-en-scène). O último deste género a que assisti deve ter sido o da Björk no Meco (e que fora igual ao do Sònar nesse ano) e já lá vão alguns anos. O concerto dos Bloc Party espantou-me, também, por isso. O esquema, inicialmente enigmático, era relativamente simples, se prestássemos atenção. Mas a reacção era imediata, não existia tempo para perceber o que é que acabara de acontecer, apenas a ideia de uma pequena cidade lá ao fundo. Sem realismo, sem figuração, sem narração (as músicas encarregavam-se disso). Ou saída de uma bd mais abstracta e com um toque de diversão.

Cidade recriada




quarta-feira, maio 16, 2007

Another place, another city

Marion, no início de Another Woman (Woody Allen, 1988), conta que arrendou um pequeno apartamento em Downtown, para escrever o seu novo livro. Escrevia sempre em casa, mas, com o barulho de obras vizinhas, tornou-se impossível fazê-lo. "Um novo livro é sempre um projecto absorvente e requer que eu me isole a sério de tudo o que não seja trabalho," diz-nos. Eu, eu só consigo escrever em Coimbra, em casa, no sótão. Este é o meu apartamento em Downtown. Quando estou em Lisboa, quase não consigo escrever ou o que escrevo nunca utilizo, apago, rescrevo, fica esquecido sob o nome de um qualquer ficheiro. Quando explico isto, são poucas as pessoas que o compreendem. Não é só pelo silêncio que necessito quando escrevo (embora este seja sempre um dos meus mecanismos preferidos para começar a escrever; começar, porque, depois, se a escrita fluiu, não ouço absolutamente nada a não ser a minha própria voz; sim, quando escrevo, ouço-me a falar e é sempre difícil acompanhar-me...), mas, sobretudo, pelo espaço. Existem pessoas que conseguem escrever num café, num jardim, à beira-mar... eu não. E, também, não é um espaço qualquer. Faltam-me as fotografias, a minha orquídea lilás e branca, os livros, o amontoado de livros em cima da mesa.
Há alguns meses atrás, comecei à procura de casa em Lisboa. Com o início desta nova fase, tornou-se fundamental ter, também, um espaço meu em Lisboa, para conseguir escrever. Os meus pais e eu vimos alguns apartamentos e confesso que em alguns me imaginei a viver, a passar os dias, a escrever, a receber os meus amigos. A Ana brincava comigo. Depois de tanto tempo a dizer que não ia conseguir sair de Coimbra para viver noutra cidade, andava à procura de casa em Lisboa. E dizia-me com um sorriso que lhe é único: "Ainda te mudas de vez para Lisboa!" Ao que eu respondia, prontamente: "Não, isso não! Passar aqui metade da semana, tudo bem; mas, a semana toda, não conseguia!" Mas, hoje, reparo que só estou em Coimbra, porque é aqui que escrevo (às vezes, estou em Lisboa com uma vontade enorme de voltar para Coimbra só para poder escrever), é aqui que eu consigo ter um ritmo de escrita (um ritmo que nada tem a ver com cadência, porque não sou nada disciplinada em relação à minha escrita), é aqui que eu tenho os mecanismos de que necessito para escrever (a meio da tarde ou ao início ou ao fim, saio e vou dar uma volta a pé, sem perder muito tempo, por exemplo), é aqui que está a minha mãe, que atura incondicionalmente as minhas birras, os meus desalentos, as minhas frustrações à procura das palavras certas, do ritmo perfeito. Em Lisboa, acontece-me, exactamente, o contrário. Não consigo escrever, a minha cabeça dispersa-se por mil e uma coisas, só penso em andar de um lado para o outro, sair, dançar! Se fosse para Lisboa, de vez, como a Ana apregoa, teria de reinventar Lisboa. E o mesmo aconteceria em Coimbra. Cada vez mais, acredito que temos de reinventar as nossas cidades, os nossos espaços quotidianos. Eu adoro este ritmo, a minha vivência, quase errante, entre duas cidades. Mas, no momento em que eu tiver de parar (talvez brevemente...), terei de as reinventar. E por que não fazê-lo sempre?

sexta-feira, maio 04, 2007

quinta-feira, maio 03, 2007

A harpa dourada

Foi quase uma experiência etérea. A sombra parecia a silhueta de um desses estranhos seres. Os dedos desfigurados, desproporcionados, extremamente compridos, como os dos fetos em início de desenvolvimento. Os gestos inquietos, como se quisessem tocar, com todos os poros da superfície da pele, o intocável. Como diz Mr. Z.: "Num segundo, estamos lá". É incrível, o poder da música. Raramente, consegui abrir os olhos. Uma força maior empurrava-me para aquela que foi uma das experiências mais extraordinárias em concertos. De olhos fechados, parecia flutuar (e o verbo parecer é, aqui, demasiado ingrato e, no entanto, não poderei dizer flutuar...).
A imagem é estranha. Uma rapariga, de aspecto frágil, segura, no seu ombro, uma enorme harpa dourada. A harpa não é um instrumento leve e, no entanto, o som que dela sai só conhece a leveza. Talvez não seja apenas o som que encanta (nem a estranheza que também seduz), mas os movimentos das mãos que tocam a harpa e fazem nascer esses estranhos e leves sons. Na sombra, os movimentos das mãos parecem irreais, impossíveis para um corpo banal. Com nenhum outro instrumento, os movimentos das mãos atingem esta beleza e leveza. Nem mesmo com o piano. E, se recordarmos, facilmente virão, à nossa cabeça, imagens filmadas de mãos a tocar piano, num momento em que as mãos atingem uma beleza superior, como se só elas conhecessem a música, como se elas fossem a música que tocam. Mas creio que não igualam a beleza dos movimentos das mãos que tocam harpa.
Já algum tempo que ando a pensar nos concertos a que assisti e assisto (no sentido que recordo frequentemente os que já assisti e penso nos que assistirei ainda). Por exemplo: os concertos dos Pixies. Os Pixies, praticamente, não falam. Não interagem com o público (como muitos repararão). Mas os seus concertos são únicos, extraordinários! Quando sobem ao palco, os primeiros são os últimos acordes. Não param. Não pensam. O ritmo é crescente. De canção para canção, o som é mais forte, o ritmo mais veloz, até atingir o auge. E aí, o concerto termina. O público vê-se aflito para pedir mais uma canção, de tão estonteante que fora tudo até àquele momento. O corpo parece rebentar (o mesmo problema de há pouco com o verbo parecer). Já é tradição ver os concertos dos Pixies com o Gonçalo e acontece sempre a mesma coisa. Os nossos pés mal tocam o chão.
O exemplo contrário pode ser o de um concerto recente, o dos Scissor Sisters. Uma perfeita mise-en-scène seria de esperar. Mas, o que torna este concerto tão especial, é a caracterização de duas personagens, que se desdobram em palco, continua e crescentemente. Mesmo que existam muito próximas do que são (Jake: "Beside the lady I am, another lady... miss Ana Matronic!" E o público ri e aplaude!), esse desdobramento é claramente perceptível e os sucessivos passos rigorosamente estudados, como as entradas e as saídas de palco ou as mudas de roupa. E a ligá-los, precisos diálogos, aparentemente espontâneos, que levam o público ao delírio.
Guardo momentos muito especiais de alguns concertos: a chuva de balões prateados no final do concerto dos Pulp no primeiro aniversário do Razzmatazz; dançar em palco com os Kings of Convenience e com a plateia quase inteira da Aula Magna a saltar e a cantar "I'd rather dance than talk with you..."; o meu estado febril no concerto dos Fischerspooner, que me impediu de estar na primeira fila, mas não me impediu de dançar; o meu primeiro concerto dos Divine Comedy, no fim do qual conheci o Neil Hannon e pude constatar que ele é mais ou menos da minha altura... Bons momentos... E que frustração não poder ir a todos os concertos que gostaria.