sábado, março 25, 2006

Deus ibi est

domingo, março 19, 2006

O desespero da arquitectura

A relação entre filosofia e arquitectura levou B. a tomar uma posição radical. Ao escrever a sua tese de doutoramento, decidiu cortar definitivamente com todos aqueles discursos, que se tornaram moda, provenientes da filosofia. B. é arquitecto de formação. A sua tese de mestrado era uma tese em arquitectura. De vez em quando, lá faz uns projectos mais ou menos utópicos ou conceptuais, mas acha-se "com os pés assentes na terra", até porque tem um irmão que é engenheiro que lhe vai chateando a cabeça. Não, B. não tem dúvidas que é um tipo que quer fazer arquitectura. Que bom é ter-se essa certeza.
Contava-me B., antes do jantar combinado para eu lhe falar de alguns problemas com que me andava a defrontar no meu mestrado (mal eu poderia imaginar que dele sairia com um problema maior ainda), todo despachado na sua maneira de falar sem parar, que "às duas por três" se deu a pensar em coisas que nada tinham a ver com aquilo que queria fazer. Os conceitos e os discursos filosóficos não serviam para nada a não ser para chatear a cabeça a um tipo. Isso não era com ele. Que se lixe a filosofia! Ele, arquitecto de formação, o que tinha a fazer era escrever uma tese em arquitectura com conceitos de arquitectura. Se para o filósofo, ele aplicava mal o termo "imagem", não lhe interessava, ele assumia-o, com todo o orgulho que um arquitecto pode ter da sua formação. Utilizaria o termo "imagem" à arquitecto.
Não lhe posso deixar de reconhecer alguma razão. Mas levei aquelas suas palavras um pouco a peito, sendo a minha expressão "levar a peito" unicamente significante da minha aflição. Já tinha construído na minha cabeça o meu futuro percurso. Aliás, já o havia descoberto há alguns anos atrás e chateava-me imenso ter que ouvir aquilo agora. Ter que ouvir os desabafos de B. sem que esses me causassem irritação. Ao contar o episódio ao Rui, com quem já não estava há algum tempo, este riu-se e obrigou-me a confessar que também eu algures já lhe tinha dado razão. Se considerar "dar razão" a um primeiro tombo no chão, acredito que sim, dei-lhe no próprio momento em que as palavras atingiram a minha audição. Mas agora que reflicto sobre isso, acredito que não. Foi um acto de desespero. Meu, claro! Dizia-me também B. que já havia tantas pessoas que tinham escrito sobre filosofia e arquitectura, sobre Deleuze e arquitectura, que foram poucas as vezes que se deixou deslumbrar por essas palavras. Acredito, mais uma vez, que tenha razão. Dou-lhe toda a razão.
Mas isso não me interessa para nada. Corbu passava a vida a dizer (durante toda a sua vida e várias, muitas, vezes pela sua vida) que o que lhe interessava era "o peso das coisas". Pensei: a arquitectura a ter um discurso próprio tem de se ocupar de tal forma com "o peso das coisas", que os únicos discursos que pode construir são apenas aqueles que só podem ser dizíveis em peso (para aplicar um termo à arquitecto ou à Corbu). Não quero com isto dizer que pensar em arquitectura com arquitectura seja o único discurso possível. Haverão outros, certamente... Mas também isso não me interessa. O que é que me interessa?
Atingir um nível em que trema à beira do abismo. Os meus pés dificilmente se manterão numa superfície sólida e o meu centro de gravidade inclinar-se-á um pouco para a frente, num movimento de balanço entre o meu corpo e o meu pensamento. Hesitarei, cederei talvez por vezes, por entre movimentos mais bruscos, mas desejarei manter-me nesse balanço. Eis como vejo a relação entre filosofia e arquitectura (muitos já saberão que eu nunca tenho os pés assentes na terra). Pensar arquitectura através de discursos filosóficos é colocarmo-nos à beira deste abismo. A filosofia tem esse processo elíptico em que as ideias nunca são fixas. E a arquitectura ocupa-se do peso das coisas! Mas eu quero chegar a um ponto em que a arquitectura não reconhece a si contornos dizíveis pelo peso das coisas. Quero vê-la a entrar em desespero! Provavelmente, eu é que irei ficar desesperada, mas também isso não me interessa. Já será tão bom chegar a esse limite... E certamente que terei muito a dizer sobre ele. Se será interessante ou não, não sei... Mas o importante é que serei eu a fazê-lo por desejo meu. Porque adoro Deleuze. E adoro Acconci. E Trisha Brown...

sexta-feira, março 17, 2006

Nada de estranho

A vida em branco é tão mais evidente quando olhamos para ela e vemos a ausência. Não uma ausência como as minhas ausências, mas a ausência que define uma vida em branco (sim, de certa forma, também é por essa ausência que eu me defino sempre). E sem esquecer (após a aula da Molder): só se conhece uma coisa quando se conhece a não-coisa. A vida em branco é pois a vida que não conhece a ausência (mas quem conhece, reconhece a sua ausência). E esta ausência é tudo!

Coisas estranhas, coisas soltas

De momento, estou ausente da minha inteligência. Aliás, ultimamente tem acontecido muitas vezes ausentar-me, enquanto Susana, da inteligência de Susana (sem querer atribuir qualquer valor, a opção pelo termo é da ciência...). Considero pois que são dissociáveis e daí a minha inteligência permitir que eu me ausente de vez em quando. E nunca o contrário: a minha inteligência nunca se ausenta de mim (o que aparentemente seria mais comum, mas tão pouco a inteligência gosta de lugares comuns). Esta minha ausência tem, porém, uma razão (coisa estranha... não à inteligência, mas a Susana). Tão simples quanto esta: não quero nada, durante uns tempos, com a minha inteligência. Tal como não quero nada com pessoas complicadas (não complexas, complicadas... obviamente são diferentes pessoas e, acima de tudo, pessoas diferentes). E porque me contamina de tal forma com o seu limite que tudo em mim deixa de ser Susana. Parece não fazer muito sentido, mas no momento, neste preciso momento em que me ausento dela, vejo como ela me limita tanto... Talvez assim faça mais sentido.
Uma vontade que tenho já há alguns dias... Não consigo precisar quantos. Não são muitos, mas parecem ter sido. Queria transcrever para aqui algumas notas sobre dois momentos importantes do tempo em que vivi em Barcelona (sim, há três anos! Os tais...). A razão também é simples, ainda que não seja estranha, mas apareça aqui mais ou menos solta, desligada, do tempo, do espaço, de tudo! Mas, mais uma vez, circunscreve-se a uma aparência. Hei-los:
Novembro, 19
Ontem não consegui escrever pois ainda estava emocionada demais, as palavras com certeza não iriam acompanhar o meu estado de euforia. Dia após dia enamoro-me desta cidade: os encantos que possui são infinitos. No Sábado, fomos assistir à passagem de uma película de animação dos anos 20, em simultâneo com o concerto (ao vivo) da sua "banda sonora", no hall do CCCB. Sentados no chão, deitados em almofadas, com pequenos e pontuais focos de luz, sentia-me em casa. Não, ainda não consigo descrever aquele momento. A história de encantar também – passava-se algures numa terra Spirito e era sobre um príncipe, uma princesa, Aladin, magos e bruxos, génios de lâmpada e outros mais, e a música mistura de violinos, baixo e sintonizadores. Lembrei-me, sempre, desde a primeira imagem, até "the end", de ti. As pessoas que estavam ali eram interessantíssimas e queria muito conhecê-las, mas cada vez mais desejo voltar para ti – este sentimento acentua-se com o passar veloz dos dias e do encantamento que vou possuindo pela cidade. Mas é a incompreensão de determinadas coisas, valores e ideias, que acentuam a minha visão daquilo que seria bom para mim. Neste momento, tu!
Novembro, 22
Ontem fomos ao cinema ver "Jonas in the desert", de Peter Semple. Chegámos apressadas a uma sala em tons vermelhos de luz. A tela ainda era branca tal como as toalhas das mesas que ocupavam a pista de uma discoteca mais tarde (soube-o quando exclamei – é bonita!): Nitsa. O filme era independente e nós também, daquele espaço, porque permanecia intocado por nós. As pessoas que o habitavam eram-nos estranhas, embora familiares ao olhar. Repetem-se em eventos deste tipo, consomem cultura alternativa, às vezes podem nem saber porquê... o filme era em inglês. Dizia Jonas que um filme independente era a liberdade de fazer libertar-se das formas e funções do cinema corrente. Era a visão de um homem, a sua expressão isolada como qualquer tela de Van Gogh, Gauguin ou Cézanne. A alternativa era o ser só – no deserto. Mas se a expressão é única, a multiplicidade dos seus frutos não o pode ser. Inúmeras pessoas apareciam a referir o quanto Jonas é especial e influenciou a sua arte. Estou numa fase de redescoberta após um ano de mudança. Várias pessoas, ao longo do ano passado, disseram que eu estava diferente. Não tinha notado, quer dizer, tomava determinadas posições que não eram habituais em mim, mas sentia-me bem. Era um novo hábito, a pele era minha porque a sentia. Neste momento, talvez pela experiência que estou a viver, tento clarificar quem sou e o que quero do futuro, quando regressar, por exemplo. Sempre fui por querer algo – sem o desejo e a paixão não sou alguém. À entrada da Sala Apolo ou Nitsa fixava várias pessoas e houve um rapaz de olhos azuis que deparou, por alguns segundos, o seu olhar no meu. Hoje recordei esse momento algumas vezes, mas não sei ainda qual o significado. Interrogo-me sobre a felicidade aqui: todos os momentos são efémeros, mas trazem um encanto inscrito neles. Tenho saudades, muitas, mas são tantas as coisas que me seduzem também... e sobretudo que vão passar a ser intrínsecas a quem sou.

Em jeito de nota: voltar atrás no tempo não tem significado algum. E ainda bem! O que permanece e o que me fez rescrever hoje estes dois excertos, dá-los a conhecer, é exactamente o mais irrelevante das minhas palavras. O mais banal. E, no entanto, o que ainda me faz pensar. O que ainda me move.
Vinha na viagem (exausta!) a pensar nas minhas ausências. Ouvi um único cd durante a viagem inteira, repetidamente: o último dos Mercury Rev. E uma música em especial mais vezes ainda.
Ain't it amazing when the seasons begin to change
Someone behind the scenes to pull some strings
I struggled with an old angel all nite long
I thought it might be nice if we talked 'til dawn
I never gave you... enough
I could've given you... my love
[E continua...]
Uma outra coisa solta. As aulas da Molder. Algo permanece em mim continuamente. Sempre fui por querer algo. Ou, como o meu pai dizia ao jantar a um amigo da família muito especial, após contar-lhe a história que tantas vezes conta: como é que eu passara a dormir sozinha no quarto com poucos meses de Vida. Acrescentando logo a seguir: "Também é por isso que é a mais independente". Só pude sorrir. Ser independente para o meu pai é exactamente o mesmo que para Peter Semple (coisa estranha...). E é-o na mesma medida que diz que eu não ando neste Mundo, ando noutro. Aí a minha expressão já não é a mesma. Também porque a graça com que diz não é a mesma. Perde toda a graça. Claro que para mim não! São a mesma coisa: ser independente e não pertencer a este Mundo. Ao meu mundo, pertenço de certeza! E nele sou independente. Ou: por ele sou independente! As aulas da Molder são fantásticas! Perturbadoras. Hoje aconteceu... uma coisa estranha. Completamente ausente (mas a ouvir atentamente), senti que algo de errado se passava com quem estava ao meu lado. Olhei e não vi qualquer sinal exterior de problema algum e, no entanto, quando lhe toquei levemente nos braços que encobriam o seu rosto e perguntei se estava tudo bem, constatei o mais horrível dos pressentimentos. Tudo o que Molder nos diz, ataca-nos. E cada um reage de forma diferente, mas, ao mesmo tempo, de forma idêntica. Tudo o que Molder nos diz, diz-nos sobre o nosso mundo. Sim, esse que só nós conhecemos e nos dizemos nele. O mundo que nos segura quando caímos em nós. Esse mundo que, por vezes e para alguns, se torna insuportável ou, pelo contrário, tão confortável que nos impede de regressar. As minhas ausências também têm a ver com isto. Nem tudo o que é estranho, é solto... nem o que é solto, é estranho.
Legenda: Eu, hoje, durante uma ausência.

segunda-feira, março 06, 2006

O limite

É engraçado como é que vimos a descobrir o nosso próprio limite ou o limite do corpo próprio. Se por um lado, o nosso corpo contém esse infinito dentro de si e são ilimitadas as suas capacidades, as suas necessidades, os seus desejos, se a sua condição é ser esse infinito, por outro lado, é frágil no seu limite. A sua condição de infinito é, na realidade, muito finita, muito condicionada. Os órgãos, de facto, atrapalham muito. E, depois de conhecer essa sua condição frágil e específica do meu limite, como me apercebi disso! Os órgãos, como Deleuze tantas vezes referiu, são obstáculos físicos a esse infinito transcendental (e por isso criou o "corpo sem órgãos").
Há alguns dias atrás, ou meses atrás, soube do quão perigoso seria aproximar-me de um qualquer limite imposto pela organização do meu corpo próprio. A minha única preocupação parecia ser, naquela altura, a minha dificuldade em dormir aquele número de horas que acredito ser o ideal para o meu funcionamento biológico. Com x horas, fico bem. Ontem, a minha preocupação era se eu poderia continuar a beber café. Com os trabalhos que tenho para fazer, o café tornou-se um aliado imprescindível e privar-me dele seria o fim do mundo. Mesmo que o fim naqueles minutos antecedentes me tivesse parecido demasiado próximo. Mas, como qualquer limite, depois de ultrapassado perde a sua condição de limite. E olhar para ele desse seu outro lado, transforma-se em algo difuso, imperceptível aos nossos olhos. Já não olhamos para ele como limite, mas também não o deixamos de apreender e registar como limite. Aquela zona indiscernível que lhe é intrínseca permite-nos continuar a olhar para ele como limite. Quer o tenhamos ultrapassado ou não. Porque ele perpetua algo de indecifrável, um momento que não se diz por causalidade alguma. Ainda que algumas justificações tentem emergir do horror ao não-se-saber-porquê.
Abano a cabeça perante tamanha sabedoria de algumas pessoas. Não propriamente àquelas de quem a Maria Ana foge a sete pés, mas exactamente àquelas que perceberam que o corpo próprio tem tanto de liberdade, como de prisão. Nos próximos dias, não tenho outro remédio senão mesmo usar uma lima para aço e aos poucos conquistar de novo a minha doce liberdade. Descanso. Por entre um café ou outro.

quarta-feira, março 01, 2006

Vida em Branco – parte II

Conforme tinha decidido, na noite seguinte peguei novamente no livro, saltei as duas páginas em branco e recomecei a leitura. As palavras que se seguiram, faziam todo o sentido. Era como se não tivesse saltado parte alguma. O prenúncio tinha ficado duas páginas atrás, a confirmação dava-se duas páginas à frente. E o entusiasmo pela leitura redobrava. Se já existia um estranho mistério oculto nas palavras que lia anteriormente, este adensara-se e recriava uma outra história dentro daquela que eu própria já havia construído. Mas o caos surgiu novamente. E desta vez o sono não obliterou a capacidade de verificar o resto do livro. A suspeita já deveria ter ocorrido, logo após as duas primeiras páginas em branco.
Sucumbi: tinha mesmo que trocar o livro. E despojar-me de toda a afecção que já havia criado por ele. Talvez renasça com um outro livro igual – igual, não! -, idêntico a ele. Amanhã, sim, amanhã, trocarei o livro. A história manter-se-á e a minha leitura far-se-á exactamente a partir daquela primeira página em branco: página 34. Suspeito, no entanto, que se haverá metáfora mais explícita do que o que eu nunca virei a saber sobre a minha personagem real será aquela do livro das páginas em branco. E começo a não gostar de metáforas. Já há algum tempo que venho a desconfiar desse mecanismo da linguagem (é fácil saber porquê...). Mas se aquele livro fala de toda uma vida em branco e aquele, aquele que é meu (mas vai deixar de o ser... ainda que tenta convencer o Senhor da livraria a deixar-me ficar com ele), tem, não duas, mas tantas páginas em branco, não pode existir metáfora alguma. As páginas em branco são mesmo aquela vida em branco. Por mais coisas que tenha a preenchê-la. Por mais viva que se sinta a minha personagem real. Estranhamente paradoxal.