domingo, março 25, 2007

Coincidências


(As fotografias foram tiradas pelo João, a partir do telemóvel).

A última surpresa. Dobro a esquina, de passo calmo e solto uma gargalhada. Num céu azul, como o de Nova Iorque? (Louise iria gostar que fosse o azul do céu de Nova Iorque e não o azul, que não é azul, mas cinzento do céu de Paris), chez Louise. chez Louise. Em cima. chez Marcelle. Em baixo. Numa moldura ao alto, a partir de uma outra moldura, de uma janela qualquer. A assinatura inconfundível de António Olaio. A cor. As letras. Não consigo lembrar-me da data. Mas do quadro, sim. Serão Louise e Marcelle, Louise Bourgeois e Marcel Duchamp? Tendo em conta, por exemplo, o que Louise dizia de Marcel... Há enigmas que podem ficar por resolver (que devem ficar por resolver em alguém, porque é inevitável no instante que se segue, construir uma história sobre Louise e Marcel), no entanto, gosto de pensar que Louise é a minha Louise e que naquele quadro de António Olaio escapa, por entre uma janela, uma visão de Louise, tão extraordinária Louise é e a sua capacidade de nos afectar, pelo que nos damos a ela, à sua obra. À sua casa, também. Era esse o sentido de quando escrevi chez Louise. Curiosamente, no título de um dos livros de António Olaio pode ler-se chez Marcel Duchamp. Como diz o próprio Olaio, existem "coincidências engraçadas, coisas que acontecem e que assimilamos nas nossas ficções." De vez em quando, gosto de pensar o contrário, como respondi, um dia, à minha mãe, sobre a escolha dos nomes das personagens de um texto. "Não fui eu quem os escolheu. Eles é que me escolheram a mim." Apareceram, enquanto, eu, por acaso, escrevia. E, mesmo que lhes consiga conhecer o rasto, existe essa coincidência alienável, a razão pela qual apareceram naquele preciso momento em que os escrevia sem pensar. Sem os procurar.
A verdade é que adoro coincidências. Não lhes atribuo muita importância, nem penso nelas exaustiva repetidamente, como se fossem prenúncios, sinais, acasos do destino fatal. Mas divertem-me! Divertem-me imenso. E quando as coincidências se aliam ao movimento repetitivo da história, da minha também, mais graça lhes acho. Um dia destes, explicava à minha mãe como várias coisas, que admiro há anos e anos, coisas que me emocionavam de forma inexplicável, um sentido abrupto, uma força estranha e desmedida, têm retornado a mim. Com um carácter diferente, mas sem perder encanto algum. Ultimamente, tem sido constante. chez Louise, numa tela de António Olaio, é apenas um desses exemplos. Aliás, chez Louise, antes de existir, já se escrevia em mim como o meu reencontro com Louise Bourgeois. Dessa conversa com a minha mãe, fui procurar uma reportagem que havia guardado sobre uma exposição de Louise. 1995. A reportagem era de 1995. De 1996, o postal dos Encontros de Fotografia. Outro momento: o encontro com José Manuel Rodrigues. Foi a partir dos Encontros de Fotografia que também conheci Alfredo Jaar. E, na Terça-feira passada, eis que o vejo no pequeno auditório do CCB. Imaginava-o mais velho. No meu colo, tinha o livro dos "Estudos sobre a Felicidade," que Jaar compôs de 1979 a 1981, em Santiago do Chile. Tinha eu, um ano, dois, três. Das aulas de Molder, recordo muitas coisas. E não preciso de me esforçar um pouco sequer para determinados momentos surgirem no meu pensamento com toda a força com que embateram em mim pela primeira vez. Num, Molder dizia como tudo o que é importante para nós, vem ter connosco, sem o procurarmos. O que é verdadeiramente importante para nós, encontramo-lo espontaneamente e, nesse mesmo momento, reconhecemo-nos no que encontramos. Sem contágio de opiniões. Molder explicava como nós descobrimos os objectos do nosso desejo, do nosso estudo, sem irmos atrás do que ouvimos a alguém dizer que aquele fulano é muito bom e por aí fora. E esse encontro é mágico! Só nosso. As coincidências são mágicas, também. Conseguem despertar a impossibilidade.

Outras coincidências: [A preencher]























sexta-feira, março 02, 2007

José Manuel Rodrigues

Alentejo Sagrado, José Manuel Rodrigues (imagem a partir de um postal dos Encontros de Fotografia de 1996).

Desde Terça-feira que andava com uma vontade enorme de escrever sobre os três dias que passei com o José Manuel Rodrigues. Vinha de Lisboa e só queria chegar a casa e procurar o conjunto de postais dos Encontros de Fotografia de 1996, para confirmar se algum era de uma fotografia do José Manuel Rodrigues. E era. A minha memória, também. O postal correspondia à minha memória das fotografias do José Manuel Rodrigues. Com os Encontros de Fotografia, construí muitas das referências que ainda hoje persigo. A minha paixão por Alfredo Jaar, por exemplo. Os Encontros eram uma espécie de instituição na cidade e, quando passaram a ser de dois em dois anos, foi um choque. Todos os anos, por exemplo, ia, pela escola (Avelar Brotero), ver as exposições dos Encontros, de tal forma que estavam enraizados na vida da cidade.
O José Manuel Rodrigues pertencia, até este Domingo, a essa memória e a todo o fascínio que ainda sinto pelos Encontros (talvez agora com alguma nostalgia e não gosto da palavra). Jamais poderia imaginar todos os momentos em que o acompanhei. Jamais poderia imaginar a sua humildade, a sua simplicidade. A forma como olha pela câmara. Observava-o, por vezes, de longe (não queria interferir de modo algum com a sua concentração, embora, muitas vezes, sucumbisse ao desejo de lhe falar sobre tantas coisas, tantas coisas que, afinal, viríamos a partilhar) a espreitar pela câmara, de olhar posto naquele ponto que me disse "depois parece flutuar." A sua silhueta ao longe, pela forma peculiar de se colocar atrás da câmara, lembrava-me, por exemplo, Tati. Mas sem o jeito desconcertado e em vez da bengala, o tripé. Do cachimbo, os óculos. O jeito, o mesmo. Qualquer coisa comum, que não se exprime em palavras. Como as suas fotografias.
Falámos sobre muitas coisas e estou-lhe imensamente grata pelo que aprendi. Falámos, por exemplo, sobre a fotografia de obras de arquitectura. Existe, na obra do José Manuel Rodrigues, uma clara distinção entre fotografia artística (à falta de uma designação minha melhor) e fotografia de obras de arquitectura. O objectivo desta última é, necessariamente, criar um registo de uma determinada obra de arquitectura, sem criar uma fronteira entre a realidade e a fabricação de uma imagem (o uso da imaginação), porque essa fotografia é a apresentação dessa realidade. Num determinado momento, o José Manuel Rodrigues exclamou: "Bem, já estou a fabricar um espaço que não existe!" "É, exactamente, isso!", exclamei de alegria. Para mim, a fotografia de uma obra de arquitectura não deve apenas apresentar essa obra. Fotografia e arquitectura são duas coisas distintas, mas há um momento em que as duas podem construir uma visão nova sobre uma determinada realidade. E, no caso a que José Manuel Rodrigues se referia, não existia sequer manipulação da realidade (que é possível, mesmo antes da manipulação pela fotografia). Essa nova visão é tão mais extraordinária, quanto o olho que a constrói. E esse é o do José Manuel Rodrigues. É o olho do fotógrafo (e não o do arquitecto). Num outro momento, enquanto procurava o "tal ponto," o José Manuel Rodrigues chamou-me a atenção para uma determinada característica do espaço e como esta, nessa procura do ponto preciso, precioso, se revelava. Benjamin diria que aquela fotografia acabara de revelar o inconsciente da realidade e a sua descoberta, como o próprio José Manuel Rodrigues, entretanto, acrescentara, só fora possível através da câmara. Do olho mecânico. É essa a beleza da fotografia. O olho do José Manuel Rodrigues funde-se, totalmente, com o olho mecânico da sua Canon, numa relação íntima indescritível. Jamais o esquecerei.