domingo, fevereiro 26, 2006

Vida em Branco

Embora ultimamente passe o dia inteiro sentada a ler, custa-me (sobretudo porque as leituras diurnas são, normalmente, na língua de Sua Majestade) deitar sem pegar num livro que em nada tenha a ver com as coisas sérias que ocupam o meu pensamento. Preciso de distracção. Já há algum tempo também que, em vez de pegar numa ficção, pegava numa revista (preferencialmente de música), mais uma vez da terra de Sua Majestade, tão obcecada que estava com a crescente necessidade em aumentar a minha capacidade de leitura e escrita em inglês. Decidi, então, voltar a ler na minha língua mãe. Elegi um autor e um livro.
Ontem, mais tarde do que tem sido habitual, retomei a leitura que tinha deixado pendente pelo sono na noite anterior. Entusiasmadíssima, eis que deparei com duas páginas em branco! Coisa estranha nos dias de hoje, mas familiar à nossa dificuldade em atribuir qualquer erro a uma qualquer máquina. Ri-me! Não podia ser mais conveniente neste dias em que leio Understanding Media de McLuhan (o "guru dos media"). E, ao mesmo tempo, não podia ser mais inconveniente, quando finalmente me imaginava a compreender uma pessoa que me é especialmente querida (ou mesmo várias outras pessoas). Pensei melhor. As duas páginas em branco não são mais do que o espaço que eu tenho vazio na minha memória dessa minha incompreensão. Contêm, exactamente, sem tirar nem pôr, todas as palavras que me diriam como decifrar um dos muitos enigmas da existência dessa outra pessoa.
Inicialmente, pensei em trocar o livro, mas depois olhei para as marcas que tinha colocado junto às passagens mais esclarecedoras (mais intensas, mais cheias de vida, mais literais) em relação a esse alguém que eu começava a vislumbrar nas páginas daquele livro (e não de um qualquer igual a ele). O livro transformou-se no Outro, quando, subitamente, a personagem principal deu lugar a uma outra personagem, uma, especificamente, próxima de mim, parte de mim. O próprio registo autobiográfico do autor impelia-me a acreditar que existe realmente uma pessoa assim, que essa pessoa vive daquela maneira e que, em qualquer situação, aquela pessoa não muda. O livro já era meu. Como é que o poderia trocar?
Tomei uma decisão (já com a luz apagada): continuarei a ler o livro, saltando essas duas páginas em branco, e, no fim, ao acabar de ler a última página, encontrarei essas duas outras páginas que completarão, realmente, a minha leitura. Algures nesta ideia, tornavam-se presentes as palavras de Godard que havia lido durante a tarde. Sobre um filme, é certo, mas e se fossem sobre um livro? Para além das páginas em branco da história da minha personagem real continuarem por preencher (e dessa forma perpetuar a minha incompreensão, deixar o espaço vazio à espera de quaisquer palavras que contradigam todas as outras), testaria, na prática, algumas dúvidas que me têm ocupado o pensamento nos últimos dias, sobretudo na montagem (é literal) do meu trabalho para o seminário da Maria Teresa Cruz. Já só desejo acabar de ler o livro o mais depressa possível.

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

sempre Comigo

Your own personal Jesus
Someone to hear your prayers
Someone who cares
Your own personal Jesus
Someone to hear your prayers
Someone who’s there
Feeling unknown
And you’re all alone
Flesh and bone
By the telephone
Lift up the receiver
I’ll make you a believer
Take second best
Put me to the test
Things on your chest
You need to confess
I will deliver
You know
I’m a forgiver
Reach out and touch faith
Reach out and touch faith


Não vou dizer muito sobre o que muitos têm para dizer. Às vezes as palavras não acrescentam grande coisa. E, no entanto, marcam-nos intensamente. Talvez não tenham sido sequer as palavras que agora relembro e que desencadearam aquilo que se poderá assemelhar à onda Deleuziana (assumo por completo a minha total dependência de hoje em adiante de Deleuze) as mais importantes dessa noite ou desse dia. Incrivelmente, de tão especial que foi o meu dia e a minha noite neste 8 de Fevereiro, não consigo escrever palavra alguma (todas as que aqui estão não passarão de duplas de outras tantas virtuais).
No entanto, sobre o concerto, porque quase que já tenho por hábito fazê-lo, algumas notas simples (não as interpretem com exactidão ou rigor ou mesmo eloquência):
1. Adorei o concerto ou talvez não... sim, adorei. Mas desejei, por vezes, um som mais poderoso, mais arrebatador. Que não deixasse espaço para respirar. O meu elevado e descentrado centro de gravidade também poderá ter contribuído alguma coisa... O som parecia faltar. E o fôlego, consequente ou não, esmorecer. Desaparecer. Por entre alguma nostalgia, também, se calhar...
2. As asas pretas voam até mais alto. Não quero com isto dizer que os momentos mais intensos tenham sido protagonizados por Gore... Mas aquela diferença que muitos apontam em relação à maturidade dos Depeche, se calhar erradamente compreendida pelo título do último álbum, não é assim tão importante. Há uma diferença, mas essa reside em mim mesma (e cada um reconhecerá em si essa diferença).
3. É bom dançar e ver dançar. Às vezes parava por completo. Não abanava nem ombros, nem braços, nem anca, nem pernas... ficava estarrecida, presa ao chão. Mas o meu olhar percorria todos aqueles corpos, tantos metros abaixo do meu ou em redor e, dentro de mim, continuava a dançar. Nunca havia parado. Gahan certamente que mantinha o meu olhar preso um pouco mais e os seus movimentos encontravam nos meus um outro movimento...
Mais palavras para quê? Os momentos mais bonitos merecem ficar por dizer.


P.S. As fotos são do Eduardo.

domingo, fevereiro 05, 2006

Os ratos caíram em Lisboa e nenhum gato os apanhou...


Quando soube que os mouse on mars vinham a Lisboa, as palavras da Mok sobre o Sonar - "O melhor concerto foi sem dúvida o dos mouse on mars. Foi brutal..." – não podiam ter vindo à memória em melhor ocasião. Ainda por cima, tudo parecia reunir-se numa alegre composição espontânea: a Mok vinha a Lisboa ver o concerto que os irmãos organizavam - e há quanto tempo é que eu não via a Mok?! Há três anos... por entre gargalhadas no Royale, a medida de tempo para tudo, como diria o Artur, amigo da Mok, um dos que só conhecia de nome das conversas de Barcelona e que tive a alegria de poder conhecer nesta Sexta-feira à tarde, foi tudo há três anos... há três anos que tínhamos estado em Barcelona juntas -, a Raquel e o Pedro estavam por Lisboa e decidiram ir ao concerto, também, e, por último, a aula da manhã da Maria Teresa Cruz sobre esse hipermedium que é o computador, não poderia ter melhor demonstração prática (com todas as implicações audiovisuais, basta ver o site dos ratinhos...)!
Os prenúncios, de facto, não podiam ser melhores! E a expectativa em nada excedeu a constatação real dos factos. É um facto que os tipos são muito bons. O que não pôde ser deduzido da minha condição in loco. Esgotada, não de um dia, mas de muitos que começam a ter consequências sérias no meu corpo, mal consegui dançar e o meus ritmos reduziram-se à combinação binária das sequências em tons de verde que, de vez em quando, lá apareciam nas paredes da sala, alternando com as "bio-sequências". Mas tudo o que o corpo não disse explicitamente, di-lo-ei eu. O lapso temporal entre essa outra sequência e a reflexão na minha memória será inexistente e abolido de início. Não poderia ter sido melhor. E, mesmo entre o meu sim-não (para exemplificar de outra forma), a saída é sempre possível. Neste caso específico, a saída de mim mesma, enquanto corpo, e habitar os outros corpos que sucumbiam energicamente numa sala despovoada.
Eis algo incompreensível. Uma sala despovoada. Num duplo sentido, claro. Se todos desabitaram os seus corpos momentaneamente ou não, não o poderei dizer, mas o nervosismo dos irmãos da Mok afinal tinha algo de verdadeiro. Não pelo concerto, que "foi brutal", mais uma vez, mas por esses corpos que habitam (n)uma cidade com pretensão à universalidade (um sorriso à "Maria Teresa Cruz"; afinal o que é computador senão um medium com pretensão à universalidade?!). Das palavras da Mok sobre o Sonar, lembro-me, também, daquelas que indicavam uma sala a abarrotar em que mal se conseguia dançar ou, simplesmente, estar. Claro que é preciso entender o contexto do Sonar. E a quantidade de pessoas que move. O culto não é um mito, de certeza. Mas em Lisboa, éramos poucos. O que foi fantástico para os que conseguiram dar asas aos seus corpos e levantar voo até Marte! (Também eu, ainda que um peso maldito me obrigara a estar presa ao chão.) Na segunda vez que subiram ao palco, os mouse on mars pediram para escurecerem mais a sala. Segundo o Rodrigo, um ambiente mais escuro ajudaria a intensificar as reacções dos corpos dançantes. Sim, para criar uma superfície lisa (a Deleuziana, claro!) de modo a intensificar a sensação. Ou, simplesmente, porque a abstracção já ia num outro nível. Lisboa deslocara-se definitivamente para um outro lugar. Barcelona, Paris, Nova Iorque, Londres, Berlim... Marte! Não interessa. O espaço eclipsara num instante. Os seleccionados para a viagem tinham sido os privilegiados. Da memória retiniana, ficaram ondas azuis.