sexta-feira, setembro 29, 2006

O fim é sempre o começo

Hoje, percebi uma vez mais como as palavras são tantas vezes insignificantes. Ou como só provam a sua superioridade quando imprimem em nós uma cicatriz viva. Aí, podemos dizer que nos marcaram de tal forma que realizaram o seu presságio. Já agradeci ao André uma vez as palavras que muitas vezes dá a conhecer (palavras de outros, palavras dele), mas uma vez não basta. Agradeço-lhe uma segunda vez e, desta, transcrevo as palavras exactas:

"Vai até ao fim dos teus erros, pelo menos de alguns, de modo a observares muito bem o género deles. De contrário, parando tu a meio caminho, avançarás sempre cegamente, voltando a cometer o mesmo género de erros, do princípio ao fim da tua vida, realizando aquilo a que alguns hão-de chamar o teu 'destino.' Força o inimigo, que é a tua estrutura, a descobrir-se. Se não pudeste entortar o teu destino, terás sido apenas um apartamento alugado." (Henri Michaux)

sábado, setembro 23, 2006

chez Louise


Abandonei a casa de Josephine por tempo indefinido, mesmo que tenha regresso marcado para muito breve. Neste momento, tenho outro objecto de dedicação. Não menos belo, não menos inquietante e misterioso. Começa tudo assim. Uma vaga ideia. Uma intuição. A sedução. A ausência de justificações plausíveis, razões concretas. É algo que preenche a nossa dedicação, o nosso entusiasmo e parece, quase sempre aos olhos dos outros, uma coisa banal. Simples, creio que é esse o seu segredo. Deve ser uma coisa simples para parecer aos olhos dos outros banal. E, no entanto, quando lhe descobrimos uma face oculta, imperceptível, ficamos eternamente gratos pela sua singela existência. Às vezes deparo-me com esta mesma sensação numa outra escala. Saio do meu pensamento abstracto e detenho-me em pormenores insignificantes do meu corpo que, no entanto, celebram a mesma determinação infundada das minhas ideias. Acontece-me, por vezes, sentir os pêlos do meu braço erguerem-se lentamente e ver os seus movimentos em câmara lenta. É uma experiência abismal e pergunto-me, muitas vezes, se não será imaginação minha. Sinto uma ligeira cócega no braço, quase sempre na parte de trás, já muito próximo do ombro, de modo que tenho de rodar o braço e olhar de soslaio para aquela pequena área. Penso que deve ser um mosquito ou um fio de cabelo caído (a sensação é muito idêntica), mas eis que vejo os meus pêlos espetados no ar. O que sinto não é mais do que a contracção dos minúsculos músculos destes, mas parece inexplicável. Ora, os pêlos ainda pertencem a uma superfície exterior. Tudo fica mais estranho quando sinto o interior do meu corpo. Não falo de dores, nem de barulhos (a barriga a dar horas), mas de um outro movimento, que em determinadas ocasiões consigo perfeitamente detectar. Uma vez comentei com o meu médico, ao que ele me disse que as pessoas mais sensíveis apercebem-se desse tipo de movimentos. E ele falava, claramente, de uma sensibilidade intrasensorial, própria aos órgãos do corpo. Foi talvez das primeiras vezes que compreendi totalmente como é que os órgãos são receptáculos de sensações (parafraseando Deleuze). Acontece, por vezes, também, ouvir o meu coração quando estou deitada. Aparentemente, não existe algo de estranho nisso. Mas em determinadas posições, sinto uma espécie de deslocação do meu coração para o meu ouvido. O som amplifica de tal forma que parece que tenho o coração no ouvido. E torna-se tão insuportável, que tenho de procurar rapidamente outra posição para conseguir adormecer. Outras vezes, abano a cabeça. De tão estupefacta que fico. Mas nem o cansaço dos últimos dias me desvia a atenção e, geralmente, acabo por me deter no bater do meu coração e adiar a doce hora do sono. E como preciso de dormir! Um outro estranho episódio sucedeu enquanto escrevia o meu trabalho sobre a casa de Josephine. Inevitavelmente, as culpas recaíram sobre o meu cansaço. Já algum tempo que não me sentia assim. Aliás, esta experiência nunca a tinha vivido. Há dias em que consigo escrever melhor, com mais ânimo, em que as palavras fluem rapidamente e faço uma ginástica incrível para as acompanhar com os meus dedos e fico toda irritada quando detecto um erro por entre a velocidade e tenho que recuar para corrigir a palavra, e há outros dias em que as palavras custam a sair e exijo a mim mesma uma elevada concentração no que quero dizer, pensando nas melhores palavras, medindo as relações entre elas, quando sei perfeitamente que no fim vou ler e detestar e apagar e começar tudo de novo num momento melhor. Houve uma altura em que acreditava que só conseguia escrever se estivesse imensamente triste. E não se tratava de uma ideia vaga, mas de uma certeza decorrida da experiência. Lembro-me da Raquel um dia dizer que tinham, então, de me pôr triste para eu poder escrever a memória descritiva do concurso que estávamos no momento a fazer. Sei, por exemplo, determinar exactamente as passagens que gosto mais da minha prova final e todas elas correspondem a momentos de um sofrimento incomensurável. Foi um tormento escrever a prova final e, ao mesmo tempo, uma alegria imensa. E é rara a vez que não me emocione quando releio algum excerto. Mas enquanto estava a escrever sobre a casa de Josephine e o corpo sem órgãos, acontecia-me, por vezes, esquecer como escrever. Sentia, literalmente, a minha cabeça vazia. Sentava-me ao computador, colocava os meus dedos sobre as teclas e não conseguia escrever uma única frase. Não conseguia. Simplesmente não sabia compor uma frase, a mais simples possível: sujeito, verbo, complemento. Nada. Esta experiência está muito longe daquela do medo e do temor pelas palavras, pela incapacidade de expressão. Mas muito perto da queda num vazio profundo que nos impede um dia de regressar. Foi, também, a seu tempo, uma experiência de uma outra espécie de limite. Não o medo de dizer algo sem importância, algo fútil, irrelevante, mas o medo, o horror, de nada dizer.
Voltando ao meu novo objecto de dedicação. Na realidade não é objecto algum. Mas, também, não posso dizer que seja um tema. É mais complexo que isso. A sua possível descrição (ou explicação) envolve tudo aquilo de que falava há pouco sobre a nossa estranha paixão por determinadas coisas, mas, acima de tudo, a própria não descrição, que não decorre de uma impossibilidade de definição, mas de um conhecimento do limite próprio dessa definição. Trata-se de construir, desenhar o limite, mais do que edificar uma definição. Andarei na corda bamba nos próximos tempos. E tudo, porque tentarei responder a uma simples pergunta que Zumthor coloca com as suas palavras simples e certeiras: "O que é que nos move?" (Em arquitectura, subentenda-se... mas também na vida, quando ambas se tocam nesse limite que vou tratar no meu trabalho sobre Louise Bourgeois.) Comecei de forma lenta, o cansaço dos últimos dias do trabalho para o José ainda não desapareceu e retomei as viagens semanais a Lisboa, com a habitual permanência de dois dias. Mas este trabalho traz um encanto muito próximo daquele que ainda tem para mim a minha prova final: poder criar personagens, ficções, associações livres (mas profícuas, espero), estranhos acasos... Adoro as pequenas histórias que se impregnam em parágrafos sérios e obtusos. Torna o processo tão mais emocionante: desvelar pequenos segredos, ouvir sussurros de palavras que sempre estiveram ali, mas que nos falam de uma forma desconhecida até então, montar cenas de sequências inimagináveis a partir de dados aparentemente banais... Os óculos de Corbu. Vou poder fazer tudo isto neste trabalho, liberta do peso que sentia ao escrever o trabalho para o José. Quando digo peso, este é indicador, apenas, das enormes responsabilidade e angústia em não decepcionar. Mas se me diverti a escrever sobre a casa de Josephine? Muito. Não conseguia escrever de outra forma. No fim, é disso que se trata quando se escreve, mesmo quando as palavras faltam ou se ausentam indefinidamente...

domingo, setembro 10, 2006

!

É o que dá juntar o Jarvis, o Neil e os Air...