sábado, dezembro 31, 2005

O último dia do Ano

Fiz uma pausa no meu trabalho e decidi, antes da chegada de todas as palavras novas, dedicar este momento a escrever algumas que eu gostasse de recordar por esse(s) ano(s) fora. Não se trata de retrospectiva alguma sobre o ano que passou, nem pouco guardar os bons momentos dentro de palavras mais ou menos perenes, mas dedicar este momento a alguma coisa, ou no meu caso, a alguém. Ou a duas pessoas: à minha Mãe e a um dos meus melhores amigos, o Hugo. Não que exclua todas as outras pessoas que compõem a minha vida e me compõem a mim... não! São todas importantes, demasiado importantes! Mas este ano marcaram-me fortemente e, de uma maneira muito estranha, andam quase sempre ligadas. Já todos conhecem a minha enorme paixão e admiração pela minha Mãe. Não é de estranhar, por conseguinte, dedicar-lhe este dia e todos os outros que se seguem. Mas neste momento tem um outro significado só compreensível na sua própria força de vida. Só traduzível em si mesma e nunca por meras palavras. O Hugo... O Hugo é um dos meus melhores amigos. Sem dúvida. E agora está distante, embora eu nunca tenha realmente sentido distância alguma. Custa-me ainda muito, imenso!, pensar na relação que existe entre a minha Mãe e o Hugo. Eles próprios não sabem, nem sequer desconfiam, mas hoje parei para pensar nisso mesmo. Porque sinto, ao contrário do que poderia esperar, uma pequena e doce alegria por os reunir em momentos de uma tristeza sufocante ou mesmo agonia...
Abril de 2000: estava em casa do Hugo a fazer a minha página para a plaqueta. Lembro-me de pormenores tão estranhos, como tão reveladores, daqueles dias. Onde tinha o carro estacionado, onde o Hugo tinha o estirador e eu o meu telemóvel pousado. Já dos instantes seguintes a este tocar e ouvir as palavras do meu irmão João me lembro tão pouco. Foi o Hugo quem me deu o primeiro abraço após a morte da minha avó Luísa.
Julho de 2005: o Hugo estava em Coimbra uns dias para... já nem sei bem! E tinha combinado com vários amigos tomar café. Apesar do prenúncio das horas anteriores já demasiado angustiantes, eu não queria perder a oportunidade de estar com o Hugo, não! Vesti-me e saí. Ao descer as escadas de casa, comecei a ouvir os primeiros rumores. Duas vozes familiares e algumas palavras imperceptíveis. Afinal era o meu irmão Miguel e o meu pai a conversarem. Qual o meu espanto por os ver ali, à porta da garagem, encostados ao carro, àquela hora da noite, a falar baixinho. A minha Mãe havia feito a citologia naquela mesma tarde e não foram precisas muitas palavras para saber de que é que eles falavam. Os olhos vermelhos e inchados do meu irmão disseram-me tudo. Voltei para trás, dei uma desculpa qualquer à minha Mãe dizendo-lhe que afinal já não me apetecia sair. Nesse instante, ela soube. Fechei-me no quarto para esconder as lágrimas e a minha Mãe, passado algum tempo e já de camisa de dormir, abriu a porta e disse-me que já sabia. Que soube, mal eu voltei para trás. Que eu escusava de lhe esconder. Eu insisti que não me apetecia sair. Só isso. O Hugo foi o primeiro dos meus amigos a saber. E de Pamplona, para onde regressou passados poucos dias, me telefonou várias vezes... e ficávamos, por vezes, uma hora a falar...
Há poucos dias, tive a enorme alegria de lhe poder dizer que estava tudo bem, que me sentia especialmente feliz após tantos momentos difíceis nos últimos meses. Um dia, um destes dias, irei, de certeza, reencontrá-los de outra forma. É talvez por isso, por esse enorme desejo, que lhes dedico este dia.

segunda-feira, dezembro 19, 2005

Como desejo ser também tão silenciosa

Passei a tarde a ouvir o último cd do Jens Lekman. Passei a tarde a tentar perceber-me. A compreender as suas palavras. A compreender-me a mim. A compreender o ritmo por detrás da sua voz. A compreender-me a mim. A compreender o que sinto quando o ouço, o ouço, o ouço... A compreender-me a mim. A surpreender-me a mim. Como ainda o ouço... ainda... ainda... Ainda o ouço. Sempre. E é tão difícil ouvi-lo sempre outra vez. E é tão fascinante ouvi-lo mais uma vez. "Oh you're so silent Jens"! Como te ouço ainda!
Os efeitos são demasiados! Muitos. Fortes. Intensos. Jamais conseguirei quantificá-los e muito menos percebê-los em toda a sua dimensão, em toda a sua clareza, em toda a sua ressonância em mim. Lembro-me do André dizer ao José, durante uma aula, que quando ouvia uma passagem de Schönberg sobre o fim do Mundo, mesmo não percebendo alemão, conseguia ser Schönberg e a música perpassava o seu corpo e ele era Schönberg e o Mundo ia acabar. O mais engraçado é que percebo toda as palavras de Jens, mesmo que às vezes o sentido não seja aquele exacto das palavras, das frases, ou seja mesmo incompreensível, acho a sua loucura extraordinária e como o percebo! E acredito sempre que me percebo a mim. Não consigo parar de ouvir a sua voz no meu corpo. Às vezes muito lentamente até atingir um outro nervo. Outras, magistralmente, irrompendo por todo o meu ser. Explodindo-me para além dos limites razoáveis que ainda me delimitam. Fragilmente, mas ainda são Susana. Mas Jens não fala do fim do Mundo nem do fim de coisa alguma. Embora eu saiba que está sempre lá. Canta sempre o fim. E como o canta. Maravilhosamente bem. Talvez da forma mais bonita que eu conheço. E as lágrimas já não são lágrimas, são pequenas explosões de felicidade. Eternas explosões. Pequenas partículas, que se reacendem em mim, de felicidade. Uma doce melodia. Adormecerei ainda a ouvi-lo. Mesmo que os meus olhos pesem.

domingo, dezembro 18, 2005

A Casa de Klee


A "Casa Giratória" de Paul Klee é a casa de sonho de qualquer habitante de uma cidade qualquer. E é a partir dela que nasce a ideia de uma casa que seja, em si mesma, movimento. Na casa de Klee, as portas rebatem-se, as janelas desdobram-se, as escadas descaem e parecem rampas, as faces desmultiplicam-se e multiplicam-se em outras janelas. Novas janelas. A casa de Klee parece daquelas casas desenhadas por seres mais pequenos, que facilmente recusam qualquer parte da casa que os iniba de se movimentarem. A casa de Klee não é, no entanto, naïf. E muito menos imaginada ou impossível. A casa de Klee existe. E, no presente trabalho, recria-se.
Existe, porém, uma casa prévia, que pertence a um dos muitos bairros históricos de Lisboa. A casa prévia à casa giratória (sem metamorfoses) é caracterizada por um tipo comum. Este tipo comum é definido por uma planta rectangular base, comum a três pisos sobrepostos verticalmente, com um conjunto central de escadas e cujas fachadas disponíveis se resumem a duas (uma orientada para a rua e outra orientada para um logradouro). A casa de Klee tem todas as fachadas disponíveis e, por conseguinte, passíveis de várias operações: é ela própria um acontecimento. Mas, no presente trabalho, não existe uma reprodução da casa de Klee, mas uma recriação ou a criação de um dispositivo da casa de Klee numa qualquer casa de um bairro histórico de Lisboa: retira-se uma janela da casa prévia e coloca-se, em seu lugar, uma janela da casa giratória.
A janela da casa giratória é tridimensional, os seus planos desdobram-se e dão lugar a portas que, por sua vez, são rampas e percursos de um banco giratório. E a janela giratória move-se, também ela própria, por uma aparente escada, que se dobra e desdobra. Quando a janela atinge um qualquer nível diferente do seu lugar, este permanece buraco. E recolhendo-se a esse, fica janela, como uma qualquer bay-window. A escada recolhe até um certo momento, ficando pendurada na fachada, a uns metros acima do nível do pavimento, evitando qualquer acto de destruição (quando a escada se desdobra e fica em posição diagonal, não necessita de qualquer "batente" ao nível do pavimento, pois o próprio peso da janela, ao longo da direcção da escada, evita o movimento desta).
O movimento da janela giratória é em si mecânico: a janela desce e sobe ao longo da "escada" através de um sistema semelhante a um elevador. Mas, depois, porque a janela giratória tem esse carácter de jogo, os planos da janela desdobram-se e dobram-se por acção do seu habitante. Um idoso pode ter dificuldade em se movimentar, mas não perdeu a capacidade de brincar!
"Las actividades lúdicas conducirán inevitablemente a una dinamización del espacio. El Homo Ludens [em itálico no original] actúa sobre su entorno: interrumpe, cambia, intensifica; recorre los trayectos y deja trazas de sus actividades.
"Más que una herramienta de trabajo, el espacio se convierte para él en un objeto de juego. Por eso quiere que sea móvil y variable. Como ya no necesita desplazamientos rápidos, puede intensificar y complicar el uso del espacio, que para él es principalmente un terreno de juego, de aventura y exploración".
[Constant, in Andreotti, Libero; Costa, Xavier; Situacionistas, MACBA / Actar, Barcelona, 1996]

segunda-feira, dezembro 12, 2005

London and Coimbra as one

Já não há espanto algum quando eu carinhosamente, com um sorriso nos lábios de miúda traquina seguido de uma gargalhada menos estrondosa que a do Pedro, chamo a Coimbra "A Metrópole"! Sobretudo quando estou com aqueles amigos que abanam a cabeça de incompreensão por esta minha "paixão"... Mas ao ler a Wire ontem (provavelmente, a única revista mensal que eu demoro mais de um mês a ler), fiquei de boca aberta! E sorri imediatamente: eis a minha Metrópole no seu melhor!
Na secção das novidades, mais ou menos a meio, aparece a revelação (caída novamente em mim, não é de estranhar tanto assim):
"The Wire's Adventures in Modern Music radio show, which is broadcast from London on Resonance 104.4 FM every Thursday between 9:30-11 pm GMT, has been syndicated do Rádio Universidade De [o "D" maiúsculo é mesmo do texto da Wire] Coimbra 107.9 FM, a college radio station in Coimbra, Portugal. The show is rebroadcast every Tuesday morning between 2-3:30 am local time and is also streamed via the station's Website, www.ruc.pt. To access the stream click the Emissão on line link".
Mais palavras para quê?

quarta-feira, dezembro 07, 2005

Things aren't as they seem

In the Wilderness, by Mercury Rev
[Refrain]

In the wilderness... things aren't as they seem
In the wilderness... Life is but a dream
That flows on...

sexta-feira, dezembro 02, 2005

O cão dos olhos azuis

Já não me lembro da última vez que fiz esta viagem de comboio (excepto hoje de manhã), já não me lembro de escrever no comboio sequer, esta experiência é ainda mais longínqua no tempo do que a da viagem só por ela. Mas enquanto vinha no táxi para Santa Apolónia, esgotada, com a cabeça encostada ao assento, de olhos fechados com uma fresta na janela a salpicar-me a cara de ar fresco, apeteceu-me imenso escrever. Não obstante o cansaço, tento. Quero mesmo escrever sobre o que de repente assombrou o meu pensamento. Na realidade, assombrou todo o meu ser. Meteu-me, novamente e como já há muito não experienciava, medo. Um cão de olhos azuis. Mas o mesmo cão de que falava há algum tempo atrás. Na altura era informe, apresentava-se-me como desconhecido, sob a luz dos faróis do meu carro à noite, entre o Coelho Branco e a Rainha de Copas. Hoje não, adquiriu uma forma de ser, entre cão e homem, um nome e uma cor de olhos. Os olhos deixaram de ser estranhos, ainda que apenas temporariamente, e obrigaram-me a olhar um todo, um outro todo que existe para além de mim neste momento e no qual eu me reconhecia como sendo eu. Enraivecida, pensei que seria meu o erro em pensar toda essa existência perante aquele ser.
Continua desconhecido, apesar do nome que lhe atribuo – sim, sou eu que lhe atribuo um nome e não ele que se diz por um determinado nome – e assim desejo que continue. Ainda que mande ao ar o Coelho Branco e a Rainha de Copas, desejo continuar por mais um tempo com o meu pensamento livre de ambiguidades. Ser, estar, ficar fora de mim por mais durante um tempo. Mas desconfio que a partir de hoje isso seja difícil, que seja difícil colocar-me face a uma total indiferença perante o desconhecido agora habitado por um cão de olhos azuis. O cão de olhos azuis obriga-me a olhar o mundo de outro modo. Com uns óculos especiais de lentes especiais e efeitos secundários (monocromáticos, porém). Estou mesmo a precisar de dormir, de descansar a minha cabeça, a minha pobre cabecinha.
E se o cão me morder? Fico com os seus dentes marcados na minha pele e grito? É esta incerteza que me prende a um tempo que afinal prefiro que ainda descanse em mim (e este descanso é idêntico ao dos mortos, em paz, sem alterar coisa alguma na existência, na minha calma e doce existência, no meu passar dos dias, na minha vida bonita, demasiado bonita, para ser justa para com ela). Sim, tenho medo de um cão de olhos azuis, mas não tenho medo de viver. Desta vez, as coisas não são assim tão simples. Há algo que escapa, que não compreendo, mas desejo profundamente conhecer, ainda que tenha medo. Existem em mim, naturalmente (neste momento muito específico são-me inerentes, amanhã deixarão de o ser), o desejo e o medo, a atracção e a repulsão por esse cão de olhos azuis. Todas as pessoas têm esse cão a olhar para elas. Eu apenas lhe vi os olhos e percebi a sua cor. A que enche agora a minha existência.