quarta-feira, novembro 30, 2005

Devir-ipod

Bem me parecia que ia acabar por escrever sobre isto. Embora não saiba muito bem porquê... Ontem explicava ao Rodrigo o que é que me andava a acontecer com o ipod, ao mesmo tempo que lhe dizia que ainda não tinha escrito sobre isso, mas que, provavelmente, iria escrever. Claro que não sei se poderei chamar a este estranho acontecimento devir-ipod, mas há, de facto, algo em mim de ipod e no meu ipod algo de mim, que a selecção que ele apresenta durante as minhas viagens a Lisboa está sempre de acordo com o que eu "preciso" de ouvir. Nem sequer me pede licença, coloca as músicas desenfreadamente, ao ritmo que ele acha ser melhor e mais adequado ao momento. E qual o meu espanto, acerta!
Exemplificando: na Quinta-feira tinha uma reunião em Lisboa às cinco e meia da tarde e não consegui sair de Coimbra antes das quatro e meia; sentei-me no carro (pedi-lhe desculpa por ter que fazer a viagem a um ritmo que ele já não conhece; sim, para espanto dos meus amigos – que ainda não acreditam – eu agora ando devagar), liguei o ipod em shuffle e... eis que ele começa a passar the Duke Spirit, Franz Ferdinand, the White Stripes, lcd soundsystem, le Tigre, Arcade Fire... sempre a abrir! Nem sabe o bem me fez e o quanto me ajudou nessa viagem. É mesmo verdade que já não fazia uma viagem de carro assim tão louca desde Julho (sim, consigo precisar a última vez que andei a uma velocidade não recomendada). Embora não tenha conseguido chegar às cinco e meia, o atraso foi menor. Ontem, aconteceu exactamente o contrário (no que respeita à selecção do meu ipod). Saí de Coimbra com todo o tempo do mundo para fazer uma viagem tranquila. Tinha combinado lanchar com o Rodrigo, mas tinha tempo, aliás, acabei por chegar mais cedo do que o previsto e andei sempre nos limites (com bónus) da lei. Mas o mais curioso é que o meu ipod decidiu passar praticamente só the Divine Comedy! Por serem os anos do Rodrigo?! Não sei... Mas a meio da viagem, desatei às gargalhadas, porque já eram coincidências a mais.
Existe, de facto, essa estranha relação entre mim e o meu ipod, sobretudo quando este está em shuffle. Aliás, não é a primeira vez que penso sobre isto e até já apontei, algures lá para baixo, uma coisa do género "a memória shuffle é mais tramada do que isso". O isso não vem agora ao caso, no entanto, a minha opinião mantém-se acerca da memória shuffle. É muito tramada! Nem conto como foi a viagem para cá...

segunda-feira, novembro 28, 2005

Depois de dez horas de sono

Estou de volta! Ontem, quando cheguei a Coimbra, ainda pensei em escrever algumas palavras sobre a fantástica noite de Sábado, mas as poucas horas de sono imobilizaram imediatamente qualquer vontade que tivesse em fazê-lo. Acho que, também, não iria conseguir dizer grande coisa, grande de justo e à medida, de tão emocionada que estava. Ainda estou. Portanto, as palavras vão escapar-me mais uma vez...
O João V. decidiu oferecer-me, como prenda de aniversário, um bilhete para a festa da Oxigénio, mais especificamente, para o concerto do Jamie Lidell, para minha felicidade! Vai ser difícil não cair em repetição, porque já foram muitas as pessoas que viram um concerto do Jamie e escreveram sobre ele. Que o Jamie se desdobra em contínuas transformações de si mesmo, já todas as pessoas sabem. Que o Jamie tem uns sapatos engraçados, já todas as pessoas sabem. Que o Jamie cola fita preta na maçã do seu Mac, já todas as pessoas sabem. Que o Pablo Fiasco é um grande maluco, também, já todas as pessoas sabem. O que é que as pessoas não sabem? Não faço a mínima ideia! Mas eu soube, mal começou a cantar, quem era Jamie Lidell. Como canta, como dança, como fala ternamente com o público, como diz timidamente "thank you" com um sorriso de miúdo de cinco anos a receber um enorme chupa-chupa vermelho em espiral e sem qualquer pretensão de artista que sai na capa da Wire ou cujo álbum foi considerado, por muitos, como um dos melhores dos últimos tempos. O Jamie é um rapaz simples. Costuma ele dizer, a quem já teve esse privilégio de conversar com ele enquanto come sopa, que é um rapaz do campo. O Jamie não gosta de cidades, prefere viver numa cidade calma e mais pequena do que numa Metropolis. E isso sente-se. A sua felicidade sente-se nessa simplicidade genuína. E vive em Berlim por isso mesmo. Porque quando sai à rua, encontra os amigos e as pessoas dizem-lhe olá e adeus e bom dia e boa tarde e tudo o que lhes vai na cabeça naquele momento. Porque, como diz, é um rapaz do campo. Simples. Com uma vida simples. Mas muito bonita. Sim, é isso que eu sei. A vida de Jamie Lidell é muito bonita. E está presente nesse tudo que ele faz durante um concerto. Que o Jamie faz tudo, também, já as pessoas sabem. E que é um sonhador, como ele diz, também. "Boy in a bubble". Sim. E eu também. O espaço do Sabotage (sem comentários, para salvaguardar qualquer juízo possível) desapareceu naquele instante em que o Jamie começou a cantar. Ouço agora, também. Não para me servir de inspiração, mas para poder reviver uma vez mais, ainda que de forma diferente, esse momento. O espaço desapareceu, o mundo desapareceu. E eu transformei-me em bola de sabão de superfície tangível a sons, formas, imagens, pequenas partículas que tornavam o ar mais leve (qual fumo?) e os meus sentidos infinitos. Desapareceu tudo! Puf! Num instante! E eu, bola de sabão, flutuei, flutuei... Os sonhos desapareceram, também. Porque deixaram de o ser. Numa bola de sabão e ao som de Jamie Lidell são reais e são possíveis. Porque é um rapaz simples e gosta de palavras simples. O Jamie diz o que tem a dizer, de forma simples, sem metáforas. Sem esconder, por trás de palavras bonitas e complicadas, o que sente. Quando diz "the city it don't like you", é mesmo isso que quer dizer. Qual metáfora, quais influências! Gosta de viver em Berlim. O Eduardo A., antes da primeira aula da manhã de Sexta-feira, perguntava-me a brincar, enquanto eu lhe explicava a letra de "Multiply", se eu iria fazer um trabalho para o seminário do José sobre isso. Sorri: "porque não?!". "Sabes o que é engraçado?" e acrescentei a história do Jamie sobre Berlim e depois a minha pequena reflexão sobre Berlim enquanto cidade e por aí fora... Provavelmente, terei um pouco de Jamie Lidell (ou serei um pouco Jamie Lidell) no trabalho para o José, que um dia nos perguntou por que é que existem músicos e arquitectos (entre outros) inspirados em Deleuze. Faz sentido.
Foi, realmente, um concerto fantástico! E como pensava, não soube dizer senão umas palavras dispersas sobre tudo o que aconteceu. Sobre os dois concertos anteriores, também, não vou conseguir dizer muito. Não me apetece... (o que não é sinónimo de não ter gostado, porque gostei). A não ser: viva o bigode! Se for a expressão de bons músicos, vale a pena!
E agora... algumas imagens, que começam a fazer falta por aqui!




Jackson and His Computer Band

WhoMadeWho


domingo, novembro 20, 2005

Porque Amo

Há tantas pessoas bonitas! E eu tenho imensa sorte em conhecer algumas. Muitas! E amo-as.

sábado, novembro 19, 2005

O Fim

O começo foi o fim também. Será que chegou a ser mesmo um começo? Hoje duvido muito que tenha sido, duvido que tenha sequer existido. É uma memória, vaga e distante, na atribulação dos dias, dos meus dias. Tenho saudades do que nem sequer existiu. Será possível? Nem letra alguma de JC me conforta: it would be just an another bad cover version. Nem mesmo a solução de Jamie Lidell: "I'm so tired of repeating myself / beating myself up / wanna take a trip and multiply / least go under with a smile". Tinha essa esperança de descansar de mim mesma e do mundo complicado das palavras complicadas, dos gestos complicados e das pessoas complicadas. Tinha essa esperança de, durante duas horas e pouco, mandar tudo ao ar e respirar de novo. "Breathe in. Breath out. Breath in. Breath out" (Pulp). Só isto.
O fim foi devidamente anunciado pelo José. O Pedro está doente. Está muito doente, como ele próprio diz e com gosto em poder dizê-lo. Não sei se gosta de estar doente ou se gosta da ideia de um dia "dar um tiro nos miolos", mas gosta de o dizer. Dizer que está muito doente e que um dia "dá um tiro nos miolos". Curiosamente, após a morte anunciada das aulas do Pedro pelo José, encontrei um livro do Pedro na estante das últimas novidades: "Os corações também se gastam". A capa é prateada e na parte que dobra lá aparece a última imagem do Pedro (antes de cortar o cabelo e parecer ainda mais gordo). As letras do título são a vermelho (porque será?). E o conjunto, o livro, salta à vista. Mais ainda quando se lê o título. Mas o coração do Pedro não está gasto. Está aparentemente gasto, porque ele o quer gasto e que todos o recebam com um coração gasto. O meu, nem pensar! Se o fim nem sequer chegou para esgotar o que nem sequer existiu, como poderia eu alguma vez gastar o meu coração?
A lufada de ar fresco ficará a pairar no ar. Na próxima semana, refarei toda a minha rotina mais uma vez (a antiga também não chegou a ser rotina). E preparo-me para esquecer tudo o que já deveria ter esquecido há muito. Sexta, às nove e meia, lá estarei.

quarta-feira, novembro 16, 2005

Sem tempo

O título original era "E se eu explodisse o Coelho Branco e a Rainha de Copas?", mas depois achei melhor voltar atrás, apagar e escrever "Sem tempo", porque é disso que se trata. Que eu queira mandar ao ar o Coelho Branco e a Rainha de Copas também é verdade!
Ontem de manhã, deparei-me com a minha falta de tempo (como tantas outras pessoas por esse mundo fora). É verdade: nunca tenho tempo para nada, queixo-me sempre da falta de tempo, penso em dormir 8 a 9 horas por noite, andar uma hora a pé, ler os livros empilhados em cima do meu estirador ao lado dos outros tantos dicionários, fazer os convites para o almoço de Natal, imprimir as fotografias do casamento da Carla e distribuir pelos meus amigos, deliciar-me com um café à beira-rio ou um chocolate quente, huuummm... E fazer tantos outros projectos e perder-me, perder-me infinitamente no tempo. Não, não penso, nem desejo que o dia tivesse mais de 24 horas, nem que eu pudesse dormir menos (e muito menos em tomar comprimidos para isso), nem que o tempo parasse e eu continuasse a trabalhar, a dormir, a ler, a brincar, a rir, a saltar... não! Seria horrível! Mas explodir o tempo talvez fosse boa ideia! Ainda não sei muito bem como é que poderia fazê-lo, embora já tenha algumas ideias, mais não seja, mandá-lo a... um sítio sempre que me apetecesse ficar mais umas horas quentinha na cama. E o tempo se quisesse, poderia recorrer ao meu relógio e adiantar-me umas horitas. E quando eu fosse andar a pé, obrigava-me a andar ainda mais depressa, em forward, para recuperar (até recuperaria duplamente). Não quero de modo algum acabar com o tempo! Não, também não! Mas torná-lo flexível... Sem aquelas tretas de políticas de gestão ou de organização de rentabilização e flexibilização do tempo! Torná-lo flexível seria multiplicá-lo sem causar danos secundários. Colocar um fragmento neste momento em que preciso de mais um bocadinho de tempo e depois tirar outro fragmento daquele momento em que não preciso de tempo a mais. Como as viagens de comboio! A maior parte das pessoas diz que prefere andar de comboio porque pode trabalhar ou ler ou ver um filme ou ouvir música. De facto, posso fazer tudo isso, mas, para mim, a viagem de comboio é um enorme desperdício de tempo. Tudo o que leio na viagem de comboio, releio outra vez. Tudo o que faço, parece-me ridículo instantes depois. O que escapa ao meu tempo é ouvir música ou ver algum filme, mas mesmo assim, para isso, arranjaria outro tempo. Arranjo sempre. Porque me são imprescindíveis. Mas a viagem não o é. Nas viagens de comboio, por exemplo, encolheria o tempo. Parece-me bem...
Saber-me-ia o tempo de outra forma, se eu pudesse efectuar todas estas operações? Ou melhor, saber-me-ia a alguma coisa o tempo?

segunda-feira, novembro 14, 2005

Maria Ana - parte II

É um privilégio poder aprender sobre a Maria nas minhas aulas de mestrado. Aparentemente, não têm nada a ver uma com a outra - a Maria e as aulas de mestrado de Estética –, mas têm! E muito. Segundo Deleuze, as crianças são puro desejo. A sua condição é desejar continuamente. Dizia-nos o José, na última aula, que quando uma criança vê fogo, deseja ser fogo. E daí a eterna atracção das crianças pelo fogo ou pela água ou por tudo o que se mexe. Existe, também, essa estreita relação entre o desejo e o movimento inerente às coisas. E as crianças são puro movimento. Uma criança quando vê uns óculos, continuava o José, intercalando com um breve sorriso para dar o exemplo contrário ao da maior parte dos filósofos que tendem a referir-se a uns óculos como um objecto estático, como um conceito, não vê os óculos pousados em cima da mesa, nem isolados de tudo o resto. A criança vê os óculos em movimento, vê as possibilidades de movimento que uns óculos podem criar, as hastes a dobrar, as lentes a virar, vê o movimento da luz a perpassar as lentes, vê só movimento. E deseja, por uns instantes, ser óculos. A vida de uma criança é este "devir incessante", acrescentava José.
Tudo a propósito dos desenhos das crianças. Deleuze tem esse fascínio pelas crianças (mais uma razão porque gosto tanto de Deleuze) e diz que a única coisa que falta aos seus desenhos para estes serem arte é a consistência (ou o plano de consistência). Quando a criança desenha, o seu desenho é exactamente um plano de imanência, mas ausente de consistência. Faltam-me ainda muitas e muitas e muitas palavras para tentar explicar o que são esses dois planos e, por agora, também não são importantes as suas definições (se é que existem, porque não podem de algum modo ser estáticas... com um sorriso nos lábios qual José a falar dos filósofos). Mas foi exactamente após estas palavras do José e ao começar a dar um exemplo, que eu me lembrei da Maria e de algo que nunca tinha percebido inteiramente. A Maria adora gatos (e cães e pássaros e sapos e cavalos e tudo e tudo) e quando desenha um gato (vamos ver se sou capaz de demonstrar!), pega num lápis e está continuamente a desenhar o gato ou continuamente a descrever movimentos no seu desenho ao mesmo tempo que nos diz que é um gato. Para a Maria, é muito simples: o gato é os movimentos que ela descreve com o seu braço e que ficam registados na folha de papel como circunferências disformes (enchem a folha inteira!). É o movimento que é, para a Maria, o gato. Quando pára de desenhar, a Maria atira logo a folha de papel para o chão e começa a desenhar outro gato. Já não é aquele gato que ficou registado na folha de papel, agora no chão, que lhe interessa. Aquele já não é um gato, nem o desenho de um gato. É uma folha de papel no chão que daí a uns instantes está a rasgar e a espalhar os pedacinhos pela sala. Eis algo de extraordinário na Maria (e em todas as crianças, claro, mas posso acompanhar a Maria de perto e agora saber por que é que ela é assim... excepcional)!

terça-feira, novembro 08, 2005

Maria Ana

A Maria Ana é uma miúda excepcional! Estranho seria dizer o contrário, uma vez que a Maria é minha sobrinha. Mas isso é aqui um pequeno pormenor, embora deva acrescentar que a minha relação com a Maria é tão especial, que um amigo meu costumava dizer: "Susana, estás a entrar outra vez em delírio mariano!". E continua a ser verdade. Sempre que falo da Maria a alguém, os meus olhos explodem de alegria e raras são as ocasiões, raríssimas, em que consigo conciliar as minhas palavras com tamanho sentimento. É imenso! Acho mesmo que a expressão "delírio mariano" é a que resume melhor esse meu estado quando falo da Maria. Mas, como disse, não era isso que eu queria apontar. É uma outra história.
Do princípio: a Maria Ana é uma miúda excepcional! Como todas as meninas, e meninos também (suponho...), de dois anos, gosta de andar a correr e a saltar, a correr e a saltar, à volta da mesa, enquanto vê o Noddy na televisão. O Noddy, para os que não o conhecem, é um boneco que parece fazer as delícias dos mais pequeninos. Imagino que seja do seu ar de duende encantado, de chapéu azul com um guizo amarelo na ponta e casaco vermelho a combinar com um lenço às bolinhas amarelas. O que de certeza também seduz a Maria é o carro que o Noddy tem. "Uau!", como diz a Maria. Di-lo, aliás, muitas vezes e sobre todas as coisas que, aos seus olhos grandes e redondos, parecem ser sempre fantásticas. O carro do Noddy e, sobretudo, a buzina do carro do Noddy são, de certeza, motivo para tal exclamação da Maria. Um dia obrigou-me a pôr o Noddy no computador. Sabia perfeitamente que podia ver o Noddy no computador e, inclusive, imprimir as imagens do Noddy para depois pintar. Mal ela sonha que o Noddy vem cá, qual estrela pop, ao Pavilhão Atlântico! A Maria sabe até a música de cor... E o nome de todas as personagens... Aqui está o problema! A Maria gosta tanto, mas tanto, da personagem de uma macaca chamada Marta, que julga ela própria chamar-se Marta. "Maria Marta", diz a Maria sempre que alguém lhe pergunta o nome. Se alguém a corrige - "não é Maria Marta, é Maria Ana" – a Maria bate o pé e grita com toda a força que tem: "Maria Martaaaaaaa"! E ela tem aquela vozinha doce, mas toda determinada, a que é impossível resistir. Eu, a brincar, digo ao meu irmão que isto já faz denotar uma certa adulteração na pessoa da Maria. A Maria não quer simplesmente ser Maria Ana. Quer ser Maria Marta. Até pode ser por gostar tanto da macaca, de facto, de vez em quando, lá anda a dizer que "é uma macaca". Mas, poucos minutos depois, está no chão a dizer que é um gato! E tanto macaca, como gato, está só a "imitar" uma macaca ou um gato. Nada demais. No entanto, quando altera o seu nome e recusa o nome que é dela, creio que a Maria está a pensar que pode realmente escolher o seu nome. E tem razão. A Maria conhece-se a si enquanto Maria Marta. Deveria, então, chamar-se Maria Marta. Por que é que não escolhemos o nome pelo qual nos conhecemos a nós próprios? Não o nome pelo qual nos chamam, mas o nome pelo qual nos conhecemos. À medida que vamos aprendendo o nome das coisas, também vamos aprendendo o nosso nome. E este nome pode ser exactamente aquele que elegemos para nos chamarmos a nós próprios. Também isto não deveria ser nada demais.
A alteração do nome pela Maria é, também, evidentemente um sinal da sua forte personalidade. E a Maria tem toda a consciência disso, aliás, reforça isso mesmo com o bater do pé e o ar zangado quando lhe dizem que ela não se chama Maria Marta, mas Maria Ana. E eu confesso: é adorável e às vezes provoco-a de propósito...

domingo, novembro 06, 2005

De quem fujo? Do Coelho Branco ou da Rainha de Copas?

O meu tempo voltou atrás. Não, não se trata disso. Mas voltou. Voltou de forma diferente, de uma forma diferente. Dizem que muitas situações se repetem, que a história é cíclica, que volta tudo outra vez. De facto, há sempre algo que volta e neste momento que atravesso existe esse algo que voltou. Custa-me defini-lo, porque permanece ainda informe na minha memória. E digo memória propositadamente. Primeiro, porque vejo nesse algo, algo de um passado não muito longínquo e algo de um presente que remete para esse passado, sem grandes coisas (a minha memória é muito pragmática nisso, ao contrário de... enfim!).
Na realidade não sei de quem fujo. Sei que não é de mim própria, mas é certamente de algo em mim. E do Coelho Branco e da Rainha de Copas, certamente. Mas como o tempo não se repete, nem volta atrás, nem pára, como posso eu fugir do Coelho Branco e da Rainha de Copas? Pelo desconhecido. Neste algo que me atravessa só consigo identificar algo desse tempo que ainda é reconhecível. Ainda por cima quando o Coelho Branco nos pergunta as horas! Ele está ali à nossa frente e não temos como evitá-lo, como desviar dele o nosso olhar e difundir o nosso tempo e o nosso espaço. É inevitável, porém eu fujo. A Rainha de Copas, no entanto, parece-me distante, aliás, continua a parecer-me distante. Mas é mentira. Tal como ela mente a si própria. Pior mentira, essa, não é? E numa esquina, encontro-a. Afinal, a distância era uma questão de "centímetros" de tempo. Em segundos, em instantes, ao virar de uma esquina, aparece-me a Rainha de Copas. Não diz nada, mas revejo no seu olhar todo um outro tempo. Aquele que deveria ser repetido.
As horas no relógio do Coelho Branco não param. Os minutos, esses podem parar. E suspender o meu tempo em lembranças, em memórias. Mas as horas não param. E ainda bem. Porque criam em mim esse sentimento duplo de não querer que o tempo pare e muito menos que volte atrás, mas que a memória, essa sim, possa voltar sempre que me apeteça num minuto suspenso. E me ajude a decidir. Se fujo ou não, já não é a questão. Tenho o Coelho Branco e a Rainha de Copas à minha frente. Já não posso fugir. Mas posso escolher e depois posso voltar atrás, porque o relógio do Coelho Branco pode parar num tempo sem que as horas parem de contar, e escolher de novo. Um outro tempo. Escolher sempre de novo. E a escolha torna-se sempre a melhor. A seu tempo.
Ia para casa Quinta-feira à noite. Não para minha casa, mas para a casa de uns amigos onde fico quando tenho de ficar em Lisboa de um dia para o outro. Não me lembrava muito bem do percurso e estava esgotada. O dia, ou melhor, a tarde tinha sido uma espiral de emoções (não digo sentimentos, mas sim simples, puras e reactivas emoções) e a noite começara por ser tranquila. Parada num semáforo, vi um cão. Um cão de rua (que afinal tinha dono) sob a luz dos faróis do meu carro. Nunca tinha pensado naquilo. Mas, não sei porquê, talvez por uma espécie de antecipação ou de colisão no meu pensamento pelos momentos imediatamente anteriores (o ter-me despedido de vários amigos), parei o meu olhar no olhar do cão. E vi-lhe os olhos. Se já sabia, nunca tinha prestado devida atenção (e de certeza que existem explicações científicas). Os olhos de um cão à noite sob a luz dos faróis de um carro desaparecem e aparecem. Desaparecem, porque se transformam num buraco. E esse buraco transforma-se em luz pura que surge aos nossos olhos como total e o buraco é um buraco e o cão não tem olhos e a luz que surge à superfície é a da profundidade do buraco. Ou, então, a luz enche a circunferência que delimita os olhos do cão com uma matéria ou com um fluxo material, palpável, tridimensional. E é outra coisa, uma matéria que nos é estranha. Os olhos do cão, por uns instantes, que eu não compreendo como um tempo comum a mim e ao cão, são outra coisa. São mesmo outra coisa. Porque os meus olhos à noite sob a luz dos faróis de um carro não são como os olhos do cão. Os meus olhos não suportariam tal luz! Num instante (e aqui o tempo é comum a mim e ao cão), eu fecharia os olhos. Instintivamente. O cão, não.
Na aula da manhã seguinte, o José (que não nos disse para o tratarmos por "Senhor Professor ou José", mas que eu tratarei, só aqui, por José) perguntava-nos o que é que acontece quando nós olhamos para um cão e o cão olha para nós. E isto sem que entre o cão e nós exista uma relação de sentimento, como aquela que existe entre nós e um animal de estimação. Sorri. Afinal a minha experiência da noite anterior não tinha sido assim tão estranha ou louca. A resposta do José não interessa para aqui. Interessa, claro! E muito. Porque as palavras do José são imensamente sábias (custa-me, aliás, atribuir-lhes qualquer ordem de valor). Mas os olhos do cão na noite anterior, sem que eu soubesse, disseram-me outra coisa que só pude compreender no fim da aula do José. O cão, o Coelho Branco e a Rainha de Copas pertencem todos ao meu tempo. O tempo que é só meu e no qual penso e escolho e vivo. Neste preciso momento, estão os três à minha frente.

terça-feira, novembro 01, 2005

O retorno (sem conotações)

Tenho uma enorme dor de cabeça há vários dias e ainda por cima deve ter criado por mim um sentimento de pertença porque teima em não me abandonar. E logo hoje que comecei a ler Francis Bacon: logique de la sensation, de Deleuze. Não passei do primeiro capítulo. Já não estou habituada a ler em francês e a dor de cabeça, teimosamente, também não permitiu qualquer esforço da minha parte. Até Sexta, tenho que ler, pelo menos, até ao sétimo capítulo. Pensei, então, que a minha dor de cabeça deveria provir de alguma causa não muito estranha ou alheia à minha rotina nos últimos dias. Excesso de vitaminas? Não creio, alguns ingredientes têm que compensar a ausência de jantar. Ontem havia chovido torrencialmente durante todo o dia, tal como nos dias anteriores. A chuva também teima em caracterizar-me o dia. Mas hoje, de facto, ainda não chovera e o céu até parecia azul, nada que tivesse a ver com a minha dor de cabeça. Falta de ar? Que ideia! Sim, falta de ar, falta de uma respiração mais ofegante, gritante, de passos acelerados ao passo da extraordinária leveza dos meus headphones. Já não andava há tanto tempo! As constantes viagens e as obrigações profissionais têm-me prendido a um assento. Mesmo que corra de um lado para o outro, ele está lá. Mesmo que descanse ou não, ele continua a relembrar-me constantemente que tenho de me sentar. E não posso parar. Ironia, não?! Que se lixe a Figura, vou tratar da outra! Não que tenha uma especial obsessão pela minha figura ou que ande a pé aceleradamente a pensar na balança e no sorriso de ver o ponteiro oscilar entre quarenta e cinco quilos e meio – quarenta e seis quilos, mas porque sinto mesmo falta de ar. Aquele ar que se move enquanto percorro o jardim linear do vale das Flores não é certamente o mesmo que o ar que se move quando me deixo ficar sentada a pensar na Figura. Penso que a minha dor de cabeça é exactamente a minha cabeça a pedir outro ar. Porquê parar? Os efeitos ainda não se notam, a causa, no entanto, desapareceu. Será cedo ainda para dizer que era disto que precisava? Não. Sinto-me renovada! E que bom que é sentir o tempo retornar (sem conotações, Deleuze ficou em cima do estirador).
Um acto tão simples quanto este ou actos tão simples (e tão comuns e tão deliciosamente bons) quanto vestir um fato de treino, calçar umas sapatilhas, pôr o ipod em shuffle... e eis que a vida regressa de outra forma. É um mistério! E como a minha cabeça recusa ouvir determinadas músicas de outrora (que alguns tempos fiquem onde estão) e selecciona outras, diria de hoje?!, que, no entanto, qual dor de cabeça, me redireccionam para essas gavetinhas atemporais da memória. Não interessam os significados originais. O mais certo é que mesmo estes são à partida adulterados e esvaziados de significado. As coisas são o que são. Mas a memória shuffle é mais tramada do que isso. Creio mesmo que não só impede um puro deleite das coisas (porque devem ser o que são), como as torna saturadas de significado. E a cada selecção vem tudo ao de cima outra vez. Contradição, não?! Sim, porque não?
O retorno que devia ser das coisas mais aprazíveis e libertadoras do acontecimento (e se se quiser, aqui até pode existir uma conotação ou outra...) tornou-se num singular momento de alucinação. A culpa, direi eu a ilibar-me a mim própria, foi da música. Ora ouça-se, em modo shuffle ou não.

"Where were you when I fell from grace
Frozen heart, an empty space
Something's changing, it's in your eyes
Please don't speak, you'll only lie
I found treasure not where I thought
Peace of mind can't be bought
Still I believe

I just hang on
Suffer well
Sometimes it's hard
It's hard to tell

An angel led me when I was blind
I said take me back, I've changed my mind
Now I believe
From the blackest room, I was torn
He called my name, a love was born
So I believe

I just hang on
Suffer well
Sometimes it's hard
It's hard to tell

I just hang on
Suffer well
Sometimes it's hard
So hard to tell",
Suffer Well, Depeche Mode

"Yearning for more than a blue day
I enter your new life for me
Burning for the true day
I welcome your new life for me
Forgive me, Let live me
Set my spirit free
Losing, it comes in a cold wave
Of guilt and shame all over me
Child has arrived in the darkness
The hollow triumph of a tree
Forgive me, Let live me
Kiss my falling knee
Forgive me, Let live me
Bless my destiny
Forgive me, Let live me
Set my spirit free (...)",
Man is the Baby, Antony and the Johnsons

"Eleanor put those boots back on,
Kick the heels into the Brooklyn dirt,
I know it isn't dignified to run,
But if you run,
You can run to the Coney Island roller coaster,
Ride to the highest point and leap across the filthy water,
Leap until the Gulf Stream's brought you down.

I could be there when you land
I could be there when you land

So Eleanor take a Green Point three point,
Turn towards the hidden sun,
You know you look so elegant when you run,
If you run, you can run,
To that statue with the dictionary,
Climb to her fingernail and leap, yeah,
Take an atmospheric leap,
Leap and let the jet stream set you down.

Could be there when you land,
I could be there when you land,
Could be there when you land.

So Eleanor put those boots back on,
Put the boots back on and run, run,
Come on over here, come on over here,
Come on over here...",
Eleanor put those boots back on, Franz Ferdinand

E agora: de volta a Deleuze e a Francis Bacon! Em simples rewind que de manhã ficou muito pouco...